Ser CLT virou sinônimo de fracasso?

Ouvimos pesquisadores da Educação para investigar uma possível relação entre a cultura do empreendedorismo, incentivada nas escolas com a reforma do ensino médio, e a percepção negativa de jovens sobre o trabalho formal de carteira assinada

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Por Washington Castilhos

Não faz muito tempo, trabalhar de carteira assinada era o desejo de praticamente todo jovem quando chegava à maioridade. Atualmente, com essa população se sentindo cada vez mais atraída pelo discurso do empreendedorismo, é crescente o número de jovens que demonizam e desqualificam a CLT – acrônimo para Consolidação das Leis do Trabalho, conjunto de normas instituídas em 1943 para regular as relações entre empregados e empregadores no Brasil. Isso se reflete nos inúmeros reels do Instagram, memes e vídeos do TikTok que associam o trabalho formal à rotina com ônibus lotado, salários baixos e chefe “mala” e colocam a CLT como sinônimo de fracasso. Mas o que está por trás dessa percepção? Essa aversão por parte dos mais jovens teria alguma relação com as reformas educacionais recentes, e sua tônica na ideologia do empreendedorismo?      

Para a socióloga Maria Carla Corrochano, professora associada da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), campus Sorocaba, seria preciso uma pesquisa aprofundada para se estabelecer uma relação direta entre o que circula nas redes e as proposições da reforma do ensino médio. Por outro lado, segundo ela, o estímulo a uma cultura empreendedora, conforme estabelecido no novo modelo de ensino, não ajuda a problematizar o que se vê nas redes. “Que mensagem está se enviando ao introduzir uma disciplina chamada empreendedorismo, e não direito social?”, questiona.

“Neste sentido, se não podemos estabelecer correlações diretas, é possível problematizar a excessiva presença do empreendedorismo no currículo do ensino médio”, afirma  a socióloga, que há pelo menos 30 anos investiga a relação entre jovens e trabalho.

De acordo com a pesquisadora, nas críticas difundidas nas redes sociais não são propriamente os direitos do trabalho que estão sendo colocados em xeque, mas sim a exploração do trabalho. “A má qualidade do trabalho e os baixos salários são questões que afetam fortemente os jovens e os setores em que eles – especialmente os mais pobres – trabalham. O que estamos observando é um questionamento contra empregos ruins, mas isso não é nada novo, só está se intensificando no atual momento”, diz.

Para ela, no lugar do estímulo ao empreendedorismo  no novo currículo escolar e da redução das disciplinas de ciências humanas, “podia-se incentivar o debate sobre os direitos do trabalho, incluindo a discussão sobre a própria CLT, e sobre as experiências e condições do trabalho”, ressalta.

Aprovada em 2017, a Lei 13.415 – que regulamenta o Novo Ensino Médio nas escolas públicas e privadas do país – introduziu no currículo os chamados itinerários formativos  e a disciplina “projeto de vida”, visando tornar a aprendizagem mais adequada às necessidades do mercado de trabalho. Com os itinerários, os estudantes têm de escolher uma das áreas de conhecimento ofertadas pela escola, definindo assim o seu percurso escolar até a conclusão do ensino médio; já a disciplina “projeto de vida” visa incentivar o empreendedorismo do jovem na escola, com a expectativa que este consiga planejar seu futuro. 

No entanto, diversas pesquisas envolvendo a comunidade escolar têm apontado equívocos em sua concepção e na sua implementação. Um desses estudos, realizado em oito estados sob a coordenação da socióloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) Wivian Weller, buscou investigar a implementação da reforma, por meio de entrevistas com diretores de escola e coordenadores pedagógicos, além de grupos de discussão com professores e estudantes. Um dos produtos do projeto é o vídeo “Itinerários incertos: desafios do novo ensino médio”, que foca nas experiências de algumas escolas, incluindo as rurais e ribeirinhas.

Responsável pela coordenação do trabalho de campo no estado de São Paulo, Corrochano afirma que os resultados da pesquisa demonstram que a percepção negativa acerca do trabalho formal não é consenso entre jovens, e que entre empreender e continuar os estudos, muitos deles ainda optam pela segunda opção. 

“A cultura empreendedora está estabelecida mas, a despeito dessa presença, os jovens problematizam a disciplina de empreendedorismo. Uma das jovens afirmou em um dos grupos de discussão: “Com todas essas disciplinas, parece que estão querendo que a gente vire motorista de Uber””, lembra a pesquisadora. “E boa parte demandava aumento de carga horária de disciplinas importantes para o Enem, pois querem continuar os estudos no ensino superior”, relata.

Em outra pesquisa conduzida por ela envolvendo jovens empreendedores e não empreendedores da periferia de São Paulo, a socióloga percebeu que estes ainda demandam direitos. “Eles citam o direito ao descanso semanal, às férias, a ter licença por adoecimento, a ter mais tempo para estudo, a trabalhar menos horas, enfim, todos os direitos relacionados à proteção do trabalho e garantidos na CLT”, diz.

Para Corrochano, nesse debate é importante considerar a heterogeneidade dos jovens. “Há jovens que estão atrás de um trabalho CLT. Segundo o Dieese, 83% dos empregos formais gerados no Brasil desde 2023 são ocupados por jovens até 24 anos. Isto é um contraponto à ideia de que todo jovem quer ser empreendedor”.

A socióloga ressalta que a cultura do empreendedorismo se insere em um contexto mais amplo, do qual fazem parte ainda “uma subjetividade neoliberal e a ascensão da extrema direita, que sistematicamente vem atacando os direitos constituídos”.

A escola e o mundo do trabalho

Ao pensar sobre a possível relação entre a reforma do ensino médio e a percepção negativa de jovens em torno da CLT e da formalização do trabalho, a educadora Adriana D’Agostini, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Transformação do Mundo do Trabalho (TMT) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), afirma que são as mudanças do mundo do trabalho que geram as reformas educacionais, e não o contrário.

“São essas mudanças que geram a necessidade de alterar a formação do jovem por uma demanda do mundo do capital”, afirma a educadora. “Elas estão relacionadas à crise estrutural do capital, e seu maior impulsionador é o desemprego estrutural. Nesse cenário, é importante lembrar que o maior índice de desemprego é entre jovens”.

Ela lembra que o próprio conceito de “jovem” vem se atualizando de acordo com as novas realidades. Até bem pouco tempo, a faixa etária que definia esse grupo ia até os 24 anos. Agora, segundo o Unicef, vai dos 15 aos 29. “Com as mudanças nas condições do mundo do trabalho, a possibilidade de essa população chegar a um grau de independência fica mais distante, então o limite dessa etapa de vida é adiado”, explica D’Agostini. 

Segundo ela, a crise estrutural vai buscar formas de exploração do trabalho e, nesse cenário, o empreendedorismo se coloca como uma possibilidade, fazendo com que o jovem queira se sentir livre e ser seu próprio chefe. “Eles não veem mais vantagens nesse emprego de carteira assinada, então aceitam a incerteza e a insegurança. E a possibilidade de sobreviver se apresenta por meio do empreendedorismo. Os jovens compram esse discurso, assim como a escola”.

Na escola, segundo ela, isto se reflete em atividades pedagógicas como os itinerários formativos. “Tais atividades são pautadas na lógica de mercado do trabalho atual e na perspectiva do empreendedorismo, que podemos chamar de ‘vire-se como puder’”. 

D’Agostini acrescenta que a lógica deste novo modelo de educação é substituir conhecimento por competência e formação, visando formar um trabalhador funcional para a sociedade atual. “São a realidade do mundo do trabalho e as necessidades do mercado que vão impulsionar reformas da Educação, de acordo com o trabalhador que se precisa formar”, afirma. 

Pesquisadora responsável pelo segmento do ensino médio no estudo “A reconfiguração da escola diante das atuais transformações no mundo do trabalho”, projeto coordenado pela educadora Célia Regina Vendramini (UFSC), ela afirma que os resultados da pesquisa sugerem que os jovens têm perspectiva de continuar os estudos, vinculando-os com a questão de trabalho. O estudo inclui uma pesquisa documental e a aplicação de questionários com 38 questões para 362 estudantes do ensino médio, além da realização de grupos focais e entrevistas com estudantes, professores e diretores de escola. De acordo com os resultados, 37% dos entrevistados afirmaram querer fazer uma faculdade, 27% desejariam estudar e trabalhar, 12% fazer curso técnico  e 8% só trabalhar.

“Os dados nos dizem um pouco sobre quem são esses jovens e o que estão percebendo de mudanças nessa configuração da escola vinculada às mudanças do mundo do trabalho”, salienta D’Agostini.

Ideologia neoliberal

Na avaliação do pesquisador Lucas Pelissari, professor do Departamento de Políticas, Administração e Sistemas Educacionais da Universidade de Campinas (Unicamp), em São Paulo, subjaz nos discursos avessos à CLT e ao trabalho formal uma ideologia neoliberal que ganhou força no Brasil a partir de 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff. 

“Nós estamos há dez anos novamente imersos na aplicação de um programa de políticas governamentais do neoliberalismo ortodoxo. Isso fica muito materializado na reforma da Previdência, na reforma trabalhista – que aprovou a terceirização irrestrita –, na emenda constitucional do teto de gastos e principalmente – o que nos interessa mais – na reforma do ensino médio”, afirma.

Segundo ele, a contrarreforma do ensino médio faz parte de um conjunto de medidas que representam a retomada do programa neoliberal no Brasil. “E esse pacote parte de princípios e pressupostos que estão contidos nesse ideário neoliberal manifesto na crítica à CLT”, observa o pesquisador.

Integrante de uma pesquisa focada nos impactos do Novo Ensino Médio nos Institutos Federais, Pelissari concorda que o tipo de educação oferecida no novo modelo contribui para o desgaste da CLT e para a perda de legitimidade da formalização do trabalho, acabando por legitimar os discursos do empreendedorismo. “O que se busca com a contrarreforma do ensino médio é primeiramente formar trabalhadores que estejam dispostos a se inserir no mercado a partir da sua profissão, nesse contexto neoliberal. Então ela faz isso precarizando a formação desses trabalhadores, porque precarizar a formação dos trabalhadores faz com que o valor da força de trabalho diminua”, diz. 

Segundo ele, além do fator econômico, há também um ingrediente ideológico. “A ideia é chamar esses trabalhadores a defenderem esse projeto, que é o de convencer, inculcar os princípios dessa nova forma de organização do capitalismo. O que se quer é trazer os trabalhadores para o lado desse projeto, e a escola é chamada a fazer isso. Ela é chamada a reproduzir esses princípios ideologicamente”, conclui.  

Para ele, o mais importante agora é saber como isso tem penetrado na população de maneira geral, nas massas populares e nas classes trabalhadoras. “É importante constatar se esse discurso tem tido adesão ou não. Há pesquisas que mostram que ele tem ganho cada vez mais legitimidade. Há uma procura por essas funções flexíveis, de trabalho informal, e uma busca de setores da classe trabalhadora por serem empreendedores de si próprios”, ressalta.

Por outro lado, Pelissari lembra que o discurso em favor do empreendedorismo e contrário à formalização não é consenso. “Há pesquisas feitas com etnografias e surveys que mostram que ainda há setores significativos da classe trabalhadora que reivindicam a CLT, que veem na CLT um conjunto de direitos importantes, e que inclusive conseguem desvendar – ainda que de maneira contraditória – esse discurso ideológico do empreendedorismo”, observa.

Qual o futuro do trabalho no Brasil?

O futuro do trabalho sempre foi uma preocupação e um tópico sempre discutido, lembra Maria Carla Corrochano. Para a socióloga, “é importante agora repensar os direitos sociais nesse novo contexto”. 

Adriana D’Agostini concorda: “É fundamental repensar os direitos sociais para podermos reverter essa situação”. Segundo ela, o horizonte não é dos melhores: “A tendência é cada vez mais termos um trabalho desregulamentado, intermitente, plataformizado e com um enorme exército de reserva, onde a competição está posta no horizonte, gerando ampliação da pobreza e da segregação social”, prevê a educadora. 

A visão é compartilhada por Lucas Pelissari. “A tendência é que o trabalho no Brasil se torne cada vez mais precário, se continuarmos aplicando esse programa neoliberal”. 

Segundo o pesquisador, a ausência de uma base científica e tecnológica nacional e autônoma piora o quadro.”O Brasil forma hoje 40 mil engenheiros por ano, enquanto a China forma 1,5 milhão. A Coreia do Sul, país menor do que o Brasil e que tem menos da metade da população brasileira, forma 200 mil engenheiros por ano. Esses dados mostram o tipo de matriz produtiva que temos”, diz. 

De acordo com Pelissari, se o país continuar assim, “vamos continuar formando pessoal para o trabalho precário, porque temos investimento precário em ciência e tecnologia e somos dependentes da importação de produtos já manufaturados”. 

Os pesquisadores acham importante visibilizar as movimentações que têm acontecido  recentemente por reivindicação de direitos trabalhistas, como os Breques dos apps, movimento de greve organizado por entregadores de aplicativos de entrega de alimentos e outros serviços que busca melhores condições de trabalho, aumento de remuneração, definição de uma taxa mínima por corrida e que os preços do minuto de corrida estejam vinculados também ao quilômetro rodado. 

Outros exemplos são o Movimento Vida Além do Trabalho (VAT), iniciativa que reivindica a redução da jornada de trabalho  a eliminação da escala 6×1, o Movimento dos Trabalhadores da Amazon, que reivindica melhores condições de trabalho na empresa, além do movimento de professores contra os trabalho nas plataformas digitais, que tem comprometido seus saberes e expertise em sala de aula. 

“O VAT, por exemplo, é importante porque questiona as condições de trabalho e jornadas exaustivas que as pessoas vivem. É disso que se trata. As pessoas estão trabalhando muito, estão exaustas e recebendo muito pouco. Então, o problema não é a CLT”, conclui Maria Carla Corrochano.

Há iniciativas mais isoladas acontecendo, e dentro das próprias escolas. Em um colégio estadual de ensino fundamental e médio de Niterói, no Rio de Janeiro, o professor de artes Rodrigo Machado tem discutido com os estudantes temas como a uberização e o mundo do trabalho na contemporaneidade, abordando, por meio de seminários, as profissões que necessitam de curso universitário ou curso técnico. 

“Um dos objetivos em discutir com os estudantes o mundo laboral e a construção do seu currículo é proporcionar uma instrumentalização e familiaridade com a linguagem do mundo do trabalho, de forma crítica”, conta Machado. “É importante discutir com os alunos a luta histórica pelos direitos dos trabalhadores, que muitas vezes são submetidos a condições de exploração e humilhação, atendo-se ao trabalho escravizado ainda no século XXI e ao trabalho infantil”.

Na atividade, os estudantes discutem os seus sonhos através da produção de curtas-metragens, produzidos por eles mesmos e exibidos a toda a escola. Para o professor, todas as subjetividades dos jovens devem ser consideradas.

“É preciso entender que essas juventudes são atravessadas por inúmeros desafios em uma sociedade patriarcal, homofóbica, racista e que historicamente opera o preconceito de classe social”, finaliza Machado, que integrou o projeto “Políticas Curriculares e Negacionismo Científico na Escola”, estudo conduzido por um grupo de pesquisadores de diferentes instituições que investigam como os documentos oficiais da educação brasileira tratam o tema do negacionismo e seus assuntos correlatos, como fake news e pós-verdade.

O tema desta reportagem é complexo e não se esgota aqui. Os pesquisadores entrevistados concordam que a visão negativa em torno da formalização do trabalho ignora o papel essencial que a CLT teve e ainda tem para a proteção do trabalhador, ao assegurar direitos básicos e evitar a precarização das relações trabalhistas. E para os que defendem a ideia de que o empreendedorismo por si só vai proporcionar prosperidade e qualidade de vida, cabem questionamentos. “Outro dia vi um comentário de uma jovem – em resposta às críticas à CLT – que dizia o seguinte: ‘Quem vai contar pra eles que o empreendedorismo exige 12 horas de trabalho sem quaisquer direitos garantidos?“, lembra Maria Carla Corrochano.