Os desafios do acesso à justiça na Amazônia

Pesquisadores analisam e propõem melhorias em políticas e práticas de gestão de acesso a serviços judiciários para pessoas e grupos em condição de vulnerabilidade social e geográfica

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Por Rodrigo de Oliveira Andrade

O isolamento, as limitações tecnológicas e as dificuldades de locomoção são algumas das principais barreiras enfrentadas pelas populações ribeirinhas da Amazônia para ter acesso à justiça. As pessoas nessas comunidades muitas vezes precisam se deslocar por até 30 horas — dependendo das condições hidrológicas e meteorológicas — para chegar à sede do único fórum da comarca mais próxima. A conclusão consta de estudos feitos por pesquisadores da Escola Nacional de Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) e da Universidade de Brasília (UnB).

Eles entrevistaram moradores de comunidades ribeirinhas em Porto de Moz, no norte do estado do Pará, nos dias 22 e 23 de março de 2023, a fim de identificar e analisar a percepção dessas populações a respeito das barreiras que elas enfrentam para acessar os serviços de justiça na região. Para chegar nessas comunidades, os pesquisadores tiveram de se deslocar de avião por cerca de 2 horas, de Belém a Porto de Moz. Navegaram depois pelo Rio Jaurucu por quase 4 horas em uma lancha rápida, percorrendo um trajeto de quase 97 quilômetros.

Imagem: José Gomes de Araújo Filho

“O estudo parte do pressuposto de que, para criar serviços essenciais às comunidades ribeirinhas, é preciso ouvi-las e entender seus problemas”, destaca Fabrício Castagna Lunardi, professor da Enfam, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, e um dos autores da pesquisa. “É imprescindível compreender a realidade em que vivem as pessoas nessas comunidades e as dificuldades que as impedem de exercer sua cidadania, para, junto com elas, pensar em possíveis soluções”, complementa o pesquisador.

As entrevistas com os moradores dessas comunidades revelaram inúmeros desafios e dificuldades. Em Porto de Moz, o isolamento implica em uma série de dilemas a serem enfrentados pelos ribeirinhos. Muitos evitam se aventurar em viagens longas à área urbana, em razão dos custos de transporte e do tempo de deslocamento. “Optam por permanecer em suas comunidades, ainda que em prejuízo de seus direitos”, comenta José Gomes de Araújo Filho, juiz titular da Vara Única da Comarca de Oriximiná, no Pará, mestrando na Enfam e um dos autores do estudo. É comum os moradores de algumas comunidades dividirem os custos para contratar transporte.

Há também desafios relacionados ao fornecimento de internet. Na comunidade ribeirinha de Itapéua, às margens do rio Jaurucu, a quase 24 horas de barco da zona urbana de Porto de Moz, a liderança local afirmou que a comunidade tem acesso a um ponto de internet na escola municipal, fornecido pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), mas o sinal é muito ruim, sobretudo quando chove, o que aprofunda o isolamento das pessoas vivendo naquela região.

A realidade das comunidades ribeirinhas no entorno de Porto de Moz fez com que Araújo Filho se articulasse com diferentes órgãos públicos para promover ações de cidadania itinerante no interior da floresta, oferecendo serviços de justiça — como expedição de certidão de nascimento, título de eleitor, resolução de causas processuais de menor complexidade etc. — a populações ribeirinhas, quilombolas e indígenas.

A mais recente percorreu o Rio Trombetas e permaneceu por cinco dias no distrito quilombola de Cachoeira Porteira, atendendo aproximadamente 4.600 pessoas. O pesquisador e seus colaboradores criaram um ponto de inclusão digital em uma escola municipal do distrito, com link direto com o fórum de Oriximiná. “Um professor fica responsável por ajudar quem precisa entrar em contato com o fórum para se informar sobre processos judiciais ou obter orientação jurídica”, relata Araújo Filho.

Esse cenário reforça a ideia de que um dos grandes desafios das políticas judiciárias no Brasil é enfrentar a desigual distribuição do acesso à justiça, especialmente em relação às pessoas e aos grupos mais vulneráveis.

“A governança digital e o uso das tecnologias adaptadas aos contextos regionais poderiam facilitar o acesso à justiça e minimizar as barreiras geográficas e sociais que afastam essas pessoas de seus direitos mais básicos, possibilitando a redução das desigualdades sociais e regionais”, destaca Beatriz Fruet de Moraes, juíza de direito titular da 1ª Vara Descentralizada do Pinheirinho, do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, no Paraná, uma das autoras da pesquisa.

Segundo a pesquisadora, que também é mestranda na Enfam, os resultados do estudo podem auxiliar na construção de políticas para aprimorar a governança digital do Judiciário na região amazônica, especialmente para facilitar o acesso à justiça pelas pessoas que vivem nas comunidades ribeirinhas.

Os pesquisadores agora pretendem expandir a pesquisa sobre acesso à justiça e governança digital para outros estados, de modo a comparar os resultados de indivíduos com culturas e realidades distintas. “Pretendemos avaliar a situação de quilombolas da Bahia e do Espírito Santo, um dos estados mais atrasados em termos de justiça digital”, destaca Lunardi. “Também vamos nos debruçar sobre regiões periféricas de cidades do Paraná.”

 

Sobre o projeto:

O projeto “Políticas públicas e práticas de gestão de acesso à justiça no Brasil: Análise do processo de formulação e implementação” foi contemplado na Chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq. 

Coordenador: Tomas de Aquino Guimaraes (UnB)