Esporte nas escolas expõe raízes da violência de gênero

Pesquisadores da UFRGS mapearam as áreas de Porto Alegre com maior índice de violência contra a mulher e analisaram como as práticas esportivas na escola estão relacionadas à reprodução de desigualdades e violências de gênero

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Por Stefanie Oliveira

O comportamento agressivo de jovens em práticas esportivas reflete a naturalização da desigualdade e da violência de gênero em regiões periféricas de Porto Alegre. Essa é a constatação de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que mapearam as regiões da capital gaúcha com maior índice de violência doméstica e analisaram o comportamento de meninas e meninos na prática do esporte em escolas públicas dessas localidades.

“A violência de gênero é uma linguagem que organiza hierarquias entre os meninos e regula o acesso das meninas aos espaços de lazer”, explica o professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano da UFRGS André Luiz dos Santos Silva, coordenador do projeto. 

Os pesquisadores realizaram quatro grupos focais com 97 estudantes de 11 a 17 anos e entrevistaram outros 59, além de seis professores da educação básica de duas escolas das zonas norte e  leste da capital gaúcha.

Incidência da violência doméstica em POA (Imagem cedida pelo projeto)

A pesquisa revela que as desigualdades de gênero se manifestam de forma mais clara fora da sala de aula, especialmente durante as aulas de educação física, recreios e atividades do contraturno, quando o controle é mais flexível e as dinâmicas entre os estudantes ocorrem com maior espontaneidade. 

“Nessas situações, é comum que os meninos dominem os espaços esportivos, como quadras e campos de futebol, enquanto as meninas são excluídas ou desencorajadas a participar”, relata o pesquisador. “Muitas vezes, quando tentam se inserir nesses ambientes, são retiradas sob a justificativa de evitar conflitos ou de que o esporte não é coisa de menina”.

Nos grupos focais realizados com os meninos, os pesquisadores mostraram cenas de violência no futebol entre jogadores dos times do Grêmio e do Internacional como disparadores para as discussões sobre violência e masculinidade. A reação dos meninos às imagens foi de comemorações efusivas diante de cenas de agressão. “Isto nos revela o quanto a estética da violência está naturalizada e associada à virilidade no imaginário masculino”, analisa Silva.

Nos grupos focais realizados com as meninas, os pesquisadores mostraram imagens de  atletas mulheres para entender como são os acessos delas ao esporte e ao lazer. Elas reagiram negativamente às vestimentas, como biquínis no vôlei de praia, afirmando que trajes do tipo não poderiam ser usados em suas comunidades, o que revela como as meninas internalizam mecanismos de autoproteção e autocensura para evitar exposição a comentários ou assédios.

As jovens relataram que, em situações como tirar a camisa do uniforme para comemorar um gol — mesmo utilizando um top por baixo —, são imediatamente advertidas pelos professores. “Isso reforça o controle sobre seus corpos e comportamentos”, aponta o pesquisador. 

No entanto, quando os meninos realizam a mesma ação, os responsáveis pela turma minimizam o comportamento, justificando que “eles são assim mesmo”. 

O discurso dos professores corrobora esse cenário. Quando foram questionados, durante as entrevistas, sobre os episódios de violência protagonizados pelos meninos nas práticas esportivas, eles reconhecem essas atitudes como esperadas e atribuem a agressividade à competitividade. “Eles interpretam essas reações como inerentes ao universo masculino”, explica o pesquisador.

 De acordo com os docentes, os estudantes costumam justificar as agressões afirmando que “o sangue subiu” – uma forma de explicar que perderam o controle. 

Ainda nas entrevistas, os pesquisadores perguntaram a meninos e meninas sobre seus acessos a espaços públicos de lazer, questionando por exemplo, onde costumam brincar. As respostas dos estudantes mostram que os meninos circulam mais por esses espaços, até mesmo longe de casa. Já as meninas, em geral, ficam restritas aos arredores de onde moram e à escola. “Percebe-se uma tendência cultural de incentivar os meninos a ocuparem os espaços públicos, enquanto as meninas são direcionadas a permanecer em casa, voltadas para a vida privada”, explica Silva.

“Xingar a mãe não pode”

Um dos achados do projeto evidencia uma “regra” que aparece com muita frequência nos esportes coletivos, especialmente no futebol — “xingar a mãe não pode”. Durante as atividades esportivas nas escolas, os pesquisadores perceberam que, nas brigas, bater ou discutir era encarado como algo natural, mas ofender as mães ultrapassava um limite que não poderia ser quebrado. Para os pesquisadores, o dado sugere que, apesar da ideia socialmente defendida de que mulheres devem ser protegidas, essa proteção está condicionada ao cumprimento de certas expectativas masculinas. Quando essas regras não são atendidas, a violência se torna legitimada — até mesmo entre meninos muito jovens, como os participantes do estudo.

Essa lógica machista é exemplificada pelo relato de um menino que, em um dos grupos focais, contou que o padrasto “dá uns corretivos” na mãe porque “ela se acha muito”, afirmando que isso é esperado. “A resposta do aluno reflete a ideia de que, se ela sofreu a agressão, foi porque mereceu, por ter agido de forma inadequada”, observa Silva. 

Para o pesquisador, justificativas como essa contribuem para naturalizar a violência como resposta a comportamentos femininos que escapam da norma. “Em alguns contextos periféricos, a violência adquire valor simbólico de poder, gerando capital social e status ao agressor”, complementa.

De acordo com o coordenador do projeto, um dos achados mais significativos da pesquisa foi a constatação do que os pesquisadores denominaram “pacto de masculinidade”. Inspirado no conceito de Male Peer Support (Suporte de Pares Masculinos) — criado em 1988 pelo sociólogo Walter DeKeseredy—, o pacto representa a tendência dos meninos de minimizar ou justificar atos de violência de gênero cometidos por outros homens, especialmente se forem ídolos ou amigos. 

No estudo, o caso do jogador de futebol Daniel Alves, acusado de estuprar uma mulher em 2022, foi utilizado para provocar debates sobre violência sexual. A resposta dos meninos revelou uma relativização das atitudes do jogador, muitas vezes culpando a vítima pelo consumo de álcool ou pela roupa usada por ela. 

“Esse comportamento de minimização reflete um acordo tácito entre pares masculinos para proteger a si mesmos e seus privilégios dentro das dinâmicas de poder e gênero”, explica o professor.

Para os pesquisadores, investigar os comportamentos desses meninos, ainda na escola, possibilita identificar padrões e influências que podem ajudar na criação de políticas públicas voltadas para a prevenção de violências no futuro.

De acordo com Silva, as iniciativas atuais contemplam mais os meninos, deixando as meninas de fora. “Por isso, um dos objetivos do projeto é abrir espaço para que meninas e mulheres tenham acesso ao esporte e ao lazer, especialmente nas periferias”, finaliza.

Sobre o projeto:

O projeto “Violência contra as mulheres e seus atravessamentos nas práticas corporais e de lazer”, realizado pelo Grupo de Estudos sobre Relações de Gênero, Educação e Violência da UFRGS, foi contemplado pela Chamada nº 40/2022 do Edital Pró-Humanidades do CNPq.

Coordenador: André Luiz dos Santos Silva (UFRGS)