Privatização avança nas escolas públicas após reforma do ensino médio

Processo em São Paulo é acompanhado de terceirização e precarização das atividades de ensino, segundo estudo feito por pesquisadores da Unicamp e do IFSP

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Por Rodrigo de Oliveira Andrade

Um dos pontos principais das mudanças propostas pelo Novo Ensino Médio, a implementação do itinerário de formação técnica e profissional na rede estadual de São Paulo transcorreu com base na privatização do ensino e na terceirização e precarização do trabalho docente. A conclusão consta de um estudo feito por pesquisadores da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE-Unicamp) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), campus de Hortolândia, interior do estado.

Para entender melhor o quadro, é preciso olhar para os meandros da Lei n° 13.415 de 2017, também conhecida como Lei do Novo Ensino Médio. A norma estabeleceu um novo formato de ensino médio no Brasil, visando tornar a aprendizagem mais estimulante para os jovens e adequada às necessidades do mercado de trabalho, além de reduzir a evasão. Dentre as principais mudanças estava o estabelecimento de um modelo de ensino organizado por áreas de conhecimento — e não mais por disciplinas — e a possibilidade de o jovem realizar, ao mesmo tempo, uma formação técnica ou profissionalizante.

Assim, das 3 mil horas da carga horária total do ensino médio, 1,8 mil passaram a ser destinadas a um currículo de formação comum; para as outras 1,2 mil, os estudantes passaram a poder escolher cursar disciplinas conforme cinco áreas do conhecimento, ou itinerários formativos: matemáticas e suas tecnologias, linguagens e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional.

Essas mudanças rapidamente viraram preocupação acadêmica, fazendo com que a reforma do Ensino Médio se tornasse tema de diversos estudos. Em um deles, sob coordenação do cientista social Evaldo Piolli, do Departamento de Políticas, Administração e Sistemas Educacionais da FE-Unicamp, um grupo de pesquisadores da educação e das ciências sociais analisou a implementação dessas mudanças no estado de São Paulo.

Instituto de Educação Clélia Nanci/São Gonçalo (RJ) Foto: Stefanie Oliveira

Eles se debruçaram sobre documentos públicos obtidos por meio do portal da transparência do governo paulista sobre o Novotec, programa de cursos rápidos e gratuitos de qualificação profissional para estudantes do ensino médio criado em 2019 e implementado na rede de ensino regular a partir de 2022 em duas modalidades: o Novotec-Expresso e o Novotec-Integrado. O primeiro disponibiliza cursos de qualificação profissional para jovens de até 24 anos, com duração de 120 horas. Na segunda, o aluno pode fazer o curso técnico integrado às suas aulas e disciplinas do ensino médio, tudo na escola e no mesmo período que estuda.

A pesquisa identificou uma série de problemas relacionados à implementação do programa. A primeira constatação foi a de que, embora a rede estadual de educação esteja sob comando da Secretaria da Educação do Estado (SEDUC), a implementação do itinerário de formação técnica e profissional ficou a cargo da Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE), que desembolsou R$ 33.266.803,34 em favor de seis instituições para oferecimento de vagas do Novotec, duas delas privadas: a Escola Técnica Sequencial, que recebeu R$ 5 milhões, e a Proz Educação, que recebeu R$ 6,4 milhões.

Em 2022, as duas instituições respondiam por 299 turmas do Novotec-Expresso, sendo 257 coordenadas pela Proz e 42 pela Sequencial. Em 2023, o Novotec-Expresso ficou novamente a cargo dessas empresas, “que usam recursos públicos para contratar professores para ministrar cursos do itinerário de formação técnica e profissional dentro das próprias escolas públicas”, explica Piolli. Em relação ao Novotec-Integrado, das 33.301 matrículas registradas em junho de 2023, 18.367 estavam vinculadas à Proz e Sequencial.

Os pesquisadores analisaram as formas de contratação dos docentes pelas duas empresas. No caso da Proz Educação, as contratações se deram pelo regime autônomo (contrato bimestral renovável) ou CLT (contrato intermitente). Ela também oferecia vagas de “Professor(a) Eventual Novotec”, “sistema no qual o professor fica de plantão para assumir alguma turma na ausência do professor titular”, diz Piolli. 

No site da Escola Técnica Sequencial, os pesquisadores também encontraram anúncios para trabalhar no Novotec: por meio de Pessoa Jurídica (PJ) com empresa constituída e hora-aula variando de R$ 19,00 a R$ 24,00, dependendo da titulação do candidato. “Temos uma situação em que parte significativa da carga horária da educação pública passa a ser ofertada por empresas privadas dentro das escolas públicas, em uma clara privatização e terceirização do ensino, que passa a ser exercido por um contingente de trabalhadores precarizados, com contratos de autônomo ou PJ”, afirma o cientista social.

Nas visitas que fizeram a algumas escolas estaduais, os pesquisadores encontraram situações em que um único professor contratado por essas empresas era responsável por toda a formação técnica dos estudantes. Outra questão que lhes chamou atenção nas conversas que tiveram nessas escolas é como o Novotec é percebido pela gestão e pelos professores. “Quando perguntados sobre os itinerários formativos que a escola oferecia, as respostas sempre caminhavam para ‘a escola tem dois itinerários formativos e o Novotec'”, conta Piolli.

Segundo Piolli, a privatização e terceirização dos docentes do Novotec faz com que o programa seja percebido como uma espécie de implante externo à organização escolar. “A rigor, o Novotec também é um itinerário formativo da escola, mas no discurso dos professores e da gestão ele não aparece dessa maneira, já que os professores do Novotec estão submetidos e respondem diretamente às empresas que o contrataram, parecendo ter pouca relação com a gestão e o coletivo escolar, não participando nem das reuniões coletivas da escola.”

Os pesquisadores identificaram ainda a ausência de uma integração entre os conteúdos da Base Nacional Comum Curricular e o itinerário de formação técnica e profissional oferecido pelas empresas. “A gestão dos cursos ministrados pelas companhias não se reporta à equipe gestora da escola nem à SEDUC. Os dados de frequência dos estudantes, notas e demais registros são encaminhados diretamente às instâncias de controle das empresas e da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, caracterizando o que denominamos de gestão paralela.”

Também constataram desigualdades em relação à oferta do itinerário. Nos cursos ministrados por parceiros públicos, como o Centro Paula Souza, há professores diferentes para cada componente curricular dos cursos e material físico (apostilas) para os estudantes. Já nos cursos oferecidos pela Proz e Sequencial, o mesmo professor ministra todos os componentes curriculares de um curso e há um predomínio de materiais didáticos digitais.

Os programas de oferta dos itinerários formativos estão previstos para serem executados por parceiros públicos e privados até o final de 2024, uma vez que os valores já foram empenhados. No entanto, o governo que tomou posse em 2023 anunciou mudanças expressivas em sua oferta, como a exclusão do programa Novotec e a adoção do que denominou Ensino Médio Paulista.

De acordo com as novas resoluções do Ensino Médio Paulista, o itinerário de formação técnico profissional volta a ficar sob responsabilidade da SEDUC. Outra mudança é que os cursos técnicos integrados ao Ensino Médio serão oferecidos em escolas próprias da rede de ensino estadual ou em escolas de instituições parceiras. “Iremos monitorar essas mudanças e acompanhar o novo formato”, conclui o pesquisador.

Sobre o projeto:

O projeto “A Implementação do Itinerário de Formação Técnica e Profissional no Ensino Médio Regular a partir da Lei 13.415/2017 nos Estados de São Paulo e Piauí” foi aprovado na chamada nº 40/2022 do Edital Pró-Humanidades do CNPq. 

Coordenador: Evaldo Piolli (Unicamp)