Projeto de ciência cidadã promove monitoramento participativo de praias do Nordeste

Iniciativa liderada pela Universidade Estadual do Ceará permite que voluntários sem experiência científica formal trabalhem com pesquisadores no monitoramento de erosões e acidentes.

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Por Rodrigo de Oliveira Andrade

Moradores, comerciantes e turistas que frequentam o litoral cearense estão trabalhando em parceria com pesquisadores no monitoramento das praias do estado. Os voluntários são instruídos a fazer fotos da paisagem com seus smartphones e a compartilhar as imagens com os cientistas por meio de suas redes sociais. As informações coletadas pelos celulares abastecem uma base de dados e são utilizadas em estudos ambientais e no monitoramento de erosões e acidentes.

A iniciativa faz parte de um projeto chamado CoastSnap NE, coordenado por pesquisadores da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e inspirado em uma metodologia criada em 2017 na Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, a qual se baseia em fotos tiradas por voluntários para rastrear mudanças na costa provocadas por tempestades, aumento do nível do mar, atividades humanas, entre outros processos.

Para isso, os pesquisadores instalam estações de monitoramento nas praias, cada uma equipada com uma placa com informações sobre como os voluntários podem participar da iniciativa, a importância das fotos para o monitoramento dos processos costeiros, de que maneira as imagens serão usadas e como os participantes podem enviá-las aos pesquisadores.

As estações contam ainda com um suporte fixo para que eles posicionem seus smartphones na horizontal. A metodologia permite que as imagens sejam feitas sempre do mesmo local e com o mesmo ângulo, dando origem a um registro da posição do litoral em diferentes condições de maré em diferentes épocas do ano.

A iniciativa cresceu e se espalhou rapidamente desde a sua criação. Atualmente, são mais de 200 estações distribuídas em 21 países. Na Austrália, análises das 44 estações gerenciadas pelos pesquisadores da Universidade de Nova Gales do Sul indicam uma forte participação da comunidade, com mais de 10 mil imagens e 4 mil participantes.

A praia do Pacheco, no município de Caucaia, a cerca de 20 quilômetros de Fortaleza, foi a primeira a integrar o projeto no Brasil, em junho de 2021. A região está localizada em um dos principais núcleos de erosão do Ceará, em um trecho costeiro cercado de paredões naturais de rocha (falésias), cujo topo é ocupado por residências e a base frequentada por banhistas. “Trata-se de uma área de alto risco de desastres”, diz o geógrafo Davis Pereira de Paula, pesquisador do Centro de Ciências e Tecnologia da UECE e coordenador científico do CoastSnap NE.

Ele explica que as imagens produzidas pelos voluntários estão ajudando os pesquisadores a monitorar o comportamento desses paredões e a estimar o risco de desmoronamento de blocos, evitando tragédias como a da praia de Pipa, no Rio Grande do Norte, em 2020. Na ocasião, um casal e um bebê morreram após parte de uma falésia desabar.

Praia de Retiro Grande, no Ceará. Imagem CoastSnap NE

As fotos também estão sendo usadas para estudar variações na largura da faixa de areia — seu encurtamento em direção ao continente permite que as marés atinjam as falésias, desgastando sua base, deixando a parte de cima mais instável e vulnerável a desabamentos. “Concluída a análise dos dados, produziremos um relatório com os resultados e o compartilharemos com os participantes”, explica Davis de Paula. “Queremos estabelecer um canal de comunicação com eles, para que possamos discutir o que melhorar nas praias monitoradas.”

O pesquisador e sua equipe também pretendem usar esses registros para outros fins, como analisar o fluxo de pessoas que frequentam as praias, identificar a presença de resíduos sólidos e manchas de poluição e até mesmo medir variações no nível do mar e alcance das ondas e das marés. “O custo de instalação de boias com sistemas de sensoriamento que captam dados oceanográficos é muito caro”, afirma o geógrafo. “As fotos podem ser uma alternativa mais barata, uma vez que nos permitem estimar o tempo que as ondas demoram para arrebentar na costa, sua altura e direção.”

Como no resto do mundo, o projeto vem crescendo rapidamente no Brasil, possivelmente porque se trata de um sistema de monitoramento de baixo custo. Já são três estações no Ceará (nas praias do Pacheco, da Taíba e de Retiro Grande) e outras duas no Piauí (nas praias do Coqueiro e da Pedra do Sal). “Pretendemos instalar mais uma estação no Rio Grande do Norte e outras quatro no litoral do Rio Grande do Sul ainda em 2023”, destaca o pesquisador.

O projeto também conta com a participação de outros parceiros, entre eles as universidades estaduais do Piauí (UESPI) e do Rio Grande do Norte (UERN), federal do Ceará (UFCE), e do Instituto Federal do Rio Grande do Sul.

Estação de monitoramento na praia de retiro grande, no ceará. imagem coastsnap ne

Ciência cidadã

O CoastSnap NE inspira-se em um modelo conhecido como ciência cidadã, que tem como objetivo envolver indivíduos sem experiência científica na produção de conhecimento por meio de colaborações com pesquisadores.

A prática ainda enfrenta desafios para se consolidar, mas vem ganhando cada vez mais espaço no Brasil. Várias iniciativas desse tipo surgiram nos últimos anos no país, permitindo que indivíduos sem formação científica formal se envolvam em levantamentos sobre padrões ecológicos de espécies, propagação de vetores de doenças, e até mesmo em estudos sobre desastres ambientais.

Um exemplo é a iniciativa que ajudou a elucidar alguns pontos do vazamento de quase 6 mil toneladas de óleo ocorrido na costa brasileira em julho de 2019. Fotos e dados enviados por WhatsApp pela população atingida ajudaram cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a caracterizar o material e a fazer um mapa online participativo, com os pontos afetados e evidências que contradiziam a versão oficial do governo de que o derramamento havia sido causado pelo petroleiro grego Bouboulina.

Um dos principais benefícios da colaboração da sociedade em pesquisas é a produção de informações que talvez não pudessem ser geradas de outra maneira — em parte porque as iniciativas de ciência cidadã muitas vezes conseguem mobilizar voluntários na coleta de grandes volumes de dados durante longos períodos e em áreas extensas.

O envolvimento de pessoas não especializadas também pode inspirar novas abordagens, permitindo que os cientistas investiguem questões ou problemas específicos da realidade dos participantes, produzindo resultados com impactos diretos e imediatos na vida deles. Algumas iniciativas se dão ainda no sentido de combater a desinformação, despertar o pensamento crítico e aumentar a confiança da sociedade na ciência.

No caso do CoastSnap NE, Davis de Paula e sua equipe vêm trabalhando nas escolas locais, realizando oficinas sobre a importância do monitoramento costeiro participativo e como ele pode dar suporte à criação de uma base de evidências que permita pesquisadores e gestores públicos identificar modificações que ocorrem no perfil das praias e entender os riscos associados a eles. “Isso ajuda a promover o letramento científico e a formar futuros pesquisadores, ao mesmo tempo que os engaja em questões ambientais e sociais associadas às zonas costeiras e marinhas”, diz.

 

Sobre o projeto

O projeto CoastSnap NE — Monitoramento e Gestão territorial participativa da linha de costa foi contemplado na chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq.

Coordenador: Davis Pereira de Paula (UECE)