Ensino superior continua desigual no Brasil, apesar de expansão

Modelo brasileiro tende a reduzir quadro de escolhas e a direcionar indivíduos menos favorecidos para instituições e setores de menor prestígio, perpetuando as desigualdades.

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Por Rodrigo de Oliveira Andrade

O governo federal criou nas últimas duas décadas dezenas de novas universidades e institutos de ensino superior públicos, e construiu dezenas de novos campi vinculados a instituições já existentes, muitos deles em cidades afastadas dos grandes centros urbanos. Desde então, pesquisadores buscam avaliar os impactos dessa política de expansão da educação superior. Vários estudos indicam que ela aumentou a oferta de cursos e o número de matrículas, contribuindo para a formação de um sistema de ensino superior amplo e diversificado — dados do último Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) do Ministério da Educação, divulgado em 2022, mostram que o número de matrículas na educação terciária no Brasil aumentou de 6,7 milhões em 2011 para quase 9 milhões em 2021. Mas seria o atual ensino superior menos elitista e capaz de oferecer igualdade de oportunidades a indivíduos de baixa renda, pretos, pardos e indígenas?

É sobre essa e outras perguntas que o grupo da socióloga Maria Lígia de Oliveira Barbosa, do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem se debruçado nos últimos anos. “As experiências de expansão da educação superior no Brasil indicam que não basta reduzir as barreiras para o ingresso de estudantes mais vulneráveis”, diz a socióloga, que é coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Ensino Superior (Lapes). “A democratização do ensino superior depende de políticas complementares mais amplas e de uma reformulação da estrutura geral do sistema educativo”, completa.

Imagem: Sam Balye/Unsplash

Segundo a pesquisadora, várias características desse sistema ainda atuam como barreiras institucionais, aumentando — e não diminuindo — as desigualdades, uma vez que estudantes menos favorecidos socialmente continuam a ser “encaminhados” para setores e instituições menos prestigiados do sistema de ensino.

Ela explica que muitas instituições criadas nas últimas décadas ainda enfrentam desafios para se consolidar como centros de ensino e pesquisa. “Elas têm dificuldade para atrair professores, sobretudo aqueles formados em grandes cidades e capitais”, afirma a socióloga. Os que aceitam trabalhar nessas instituições amiúde continuam morando em suas cidades de origem, deslocando-se para o interior apenas no período letivo. Alguns se mudam para essas cidades, mas seguem à procura de oportunidades em municípios maiores, com mais infraestrutura — não por acaso, os pedidos de transferência de docentes entre universidades federais são frequentes. “Essa dinâmica tem um impacto importante na qualidade do ensino e no estabelecimento da cultura de pesquisas nas regiões mais afastadas”, diz Barbosa.

Além disso, a pesquisadora avalia que, se por um lado, a adoção de políticas afirmativas pelas universidades ampliou o acesso de estudantes de baixa renda, pretos, pardos e indígenas ao ensino superior, por outro, ainda faltam políticas que garantam a permanência desses indivíduos nos cursos, sobretudo aqueles mais valorizados, como os de medicina, engenharia e direito.

Em estudo recente publicado na Dados — Revista de Ciências Sociais, os pesquisadores do grupo de Barbosa constataram que a maioria dos concluintes nesses cursos tem perfil socioeconômico privilegiado — homens, brancos e filhos de pais com formação superior —, e esse domínio é maior nesses cursos do que em outros. “Os cursos ligados às chamadas profissões imperiais seguem como espaços privilegiados no sistema de ensino, mesmo após a política de expansão no país”, afirma a socióloga.

Segundo ela, tais fatores institucionais operam como barreiras para que estudantes de origem popular tenham acesso ao diploma. “Eles também ajudam a perpetuar e a fortalecer uma hierarquia de competências, as quais mais tarde se traduzem em hierarquias sociais”, acrescenta Barbosa. Uma evidência dessa hierarquia seria a forte preferência dos estudantes pelo bacharelado — considerado o mais prestigiado entre os três graus acadêmicos —, em detrimento das licenciaturas e dos cursos tecnológicos, tidos como de menor prestígio por terem menor retorno financeiro. Dados do último Censo da Educação Superior mostram que os cursos de bacharelado concentram a maioria dos ingressantes da educação superior (54,8%), seguidos pelos cursos tecnológicos (29,7%) e os de licenciatura (15,4%). Na avaliação da pesquisadora, o modelo brasileiro de ensino superior, a despeito de sua expansão, ainda tende a tornar menos legítimos esses outros caminhos no sistema universitário, reduzindo o quadro de escolhas ao bacharelado, ao mesmo tempo que direciona indivíduos menos favorecidos para instituições e setores de menor prestígio dentro e fora do sistema de ensino.

Ela cita como exemplo os horários ou turnos de alguns cursos. “A implementação de cursos noturnos, seja nas instituições públicas ou privadas, foi um passo importante para aumentar as oportunidades de acesso ao ensino superior para muitos estudantes que trabalham”, destaca a pesquisadora. Ela acrescenta: “O problema é que se estabeleceram cursos noturnos, em sua maioria, nos cursos de licenciatura, cujo efeito de canalização dos mais pobres tem sido observado em vários estudos no Brasil.” Ou seja, a passagem pelo ensino terciário não parece ter conseguido suplantar o peso da origem social na definição dos destinos ocupacionais dos estudantes brasileiros.

“A expansão não significou uma alteração significativa de estrutura de oportunidades educacionais e de emprego”, diz Barbosa. Segundo ela, há uma tendência de fortalecimento das desigualdades, mesmo que o sistema tenha passado por uma expansão das matrículas.

Os resultados das análises dos padrões de expansão, diferenciação e diversificação do sistema de ensino superior brasileiro feitas pelo grupo de Barbosa serão agora comparados com os de outros países da América Latina, notadamente Argentina, Chile, Peru e Uruguai, cujos modelos de educação superior diferem muito do Brasil. A ideia é entender como se deu a expansão do ensino superior nesses países, analisando os tipos de diploma oferecidos, as carreiras e os conhecimento valorizados, os padrões de acesso, conclusão e resultados dos egressos etc., de modo a verificar se ele permitiu a inclusão de indivíduos pobres, negros e indígenas, ou de mulheres. “Queremos saber o que podemos aprender com a experiência deles, de modo a usar esse conhecimento para aperfeiçoar nosso sistema”, finaliza.

imagem: freepik

Sobre o projeto

O projeto Políticas de Ensino Superior na América Latina: Expansão, Diversificação, Modelos Institucionais e Renovação das Elites foi contemplado na Chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq. 

Coordenador: Maria Ligia de Oliveira Barbosa (UFRJ)