Desinformação à brasileira

Pesquisadoras do INCT-CPCT identificam ecossistema de desinformação climática com especificidades brasileiras em publicações no Facebook e Instagram

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Por Rodrigo de Oliveira Andrade

O Facebook vem se transformando em um espaço de desinformação climática mais explícita — quase caricata — no Brasil, ao associar-se a fanatismos de ordem política e religiosa. Já no Instagram, as estratégias de desinformação têm se alinhado mais ao chamado “novo negacionismo”, o qual, diante das crescentes evidências de mudanças no clima, busca desacreditar os cientistas, os movimentos pelo clima e as soluções para a crise.

A conclusão consta de um estudo desenvolvido por um grupo de pesquisadoras do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Elas analisaram a dinâmica de desinformação climática em publicações do Facebook e Instagram no Brasil, tendo como foco fenômenos envolvendo a deturpação de dados científicos para desacreditar a ciência.

As pesquisadoras se debruçaram sobre 77 posts de desinformação climática publicados nas duas plataformas entre janeiro e dezembro de 2023, ano marcado por recordes de indicadores climáticos no Brasil e no mundo — sinalizando que as mudanças climáticas estão ocorrendo de forma mais rápida e acentuada do que se imaginava.

As autoras categorizaram as postagens de acordo com vários enquadramentos, como eixo temático, tipo de desinformação, atores sociais, formato e linguagem, entre outros. Em seguida, quantificaram a regularidade desses marcadores, cruzando-os com a presença ou ausência de argumento científico para observar se o uso da ciência na desinformação climática servia para reforçar pontos de vista, impulsionar controvérsias etc.

Os temas predominantes nas postagens de desinformação feitas no Facebook e Instagram no período traziam em si um componente emocional relacionado ao medo das mudanças climáticas (18%) e seus desdobramentos (18%), com afetações sobre o que um novo clima global pode trazer para a ordem social, para as políticas migratórias e a saúde humana. “Nesse último caso, percebemos uma recorrência de conteúdos sobre microorganismos e doenças que poderão se intensificar com a alta das temperaturas”, afirma Luana Cruz, pesquisadora do INCT-CPCT e uma das autoras do estudo,  publicado no início de março na revista Comunicação e Sociedade.

“O aumento de casos de infecção pela Naegleria fowleri, conhecida como ameba ‘comedora de cérebro’ e causadora da meningoencefalite amebiana primária (PAM), tem causado preocupação nos Estados Unidos. Esse organismo de água doce tem se expandido por causa das mudanças climáticas”, escreveu um usuário do Facebook.

Publicação de cunho religioso e espiritual também foram recorrentes nas publicações analisadas, apontando para uma conexão entre o aquecimento da Terra e o apocalipse bíblico. “Essa retórica faz os interlocutores imaginarem o futuro a partir de visões apocalípticas, e isso não se manifesta apenas de forma religiosa ou espiritual, mas também de acordo com teologias econômicas do mercado financeirizado e suas formas oraculares, conspiratórias, piramidais e fantasmagóricas”, comenta Cruz.

Em uma das postagens no Facebook analisadas pelas pesquisadoras, pode-se ler: “Nada sobrará. Vermes que desaparecerão num estalar de dedos diante da Ira de Deus. A Natureza será despertada de seu silêncio prolongado, o que ocasionará catástrofes inimagináveis”.

Ao analisarem as publicações separadamente em cada rede social, constataram que o Facebook concentrou a maioria dos posts com temática religiosa e espiritual (22%), sendo encabeçados por publicações em grupos públicos de lideranças religiosas e promotores da espiritualidade. No Instagram, os temas predominantes foram aqueles ligados ao medo das mudanças climáticas (26%) e seus desdobramentos (26%), seguidos de eventos climáticos extremos (16%) — este último impulsionado pela desinformação durante uma onda de calor que acometeu o Brasil em setembro e outubro de 2023.

Publicações marcadas pela negação das mudanças climáticas apareceram de forma discreta no Facebook (9%) e sequer aparecem no Instagram. “Esse dado nos ajuda a perceber uma adaptação das narrativas negacionistas para uma época de aquecimento inegável”, destaca Cruz. “Com os recordes de calor recentes e a ocorrência cada vez maior de eventos extremos do clima, ficou difícil defender a falsa ideia de que o aquecimento global não existe. Em vez disso, antigos porta-vozes da teoria agora minimizam a mudança climática ou desacreditam as soluções para o problema.”

As pesquisadoras também analisaram os tipos de desinformação em cada plataforma, constatando que, no Facebook, 37% das publicações apresentavam conexões e contextos falsos ou conteúdos fabricados, contraditórios, insustentáveis, ao passo que outros 30% alinha-se a fanatismos religiosos, políticos, entre outros. 

Postagens com conexões e contextos falsos ou conteúdos fabricados, contraditórios e insustentáveis também foram predominantes no Instagram (35%), assim como conteúdos sugerindo grandes novidades (19%) e simulando texto jornalístico ou de divulgação científica (19%). “Essa diferença entre as duas plataformas mostra que o Facebook vem se desenhando como espaço de desinformação climática mais explícita, quase caricata, ao se associar a fanatismos, em contraposição ao Instagram, em que se delineia uma desinformação climática mais alinhada ao ‘novo negacionismo’”, acrescenta a pesquisadora.

Na avaliação de Cruz, ao que tudo indica, comunicadores e públicos brasileiros experienciam um debate público marcado pelo medo em tom catastrófico (que estimula o sentimento de gravidade das mudanças climáticas), por meio de publicações carregadas de contextos falsos e agenciadas por mídias alternativas que se posicionam como hubs de notícias e confundem os interlocutores. “Os dados também reforçam a existência de ecossistemas de desinformação climática com especificidades brasileiras, que fazem a discussão pública caminhar para um espaço de finitude da humanidade”, afirma.

O debate sobre como as pessoas escolhem no que acreditar e por que algumas rejeitam consensos científicos sobre mudanças climáticas é complexo e inconclusivo. Um estudo publicado em fins de 2024 também por pesquisadores do INCT-CPCT na revista Mídia e Cotidiano debruçou-se sobre essa questão ao analisar a percepção dos brasileiros sobre mudanças climáticas e os fatores que influenciam sua visão sobre o tema. 

Eles entrevistaram 2.069 pessoas com 16 anos ou mais de centros urbanos de diferentes regiões do país. Verificaram que a maioria (91%) acredita que as mudanças climáticas estão acontecendo — resultado condizente com outras pesquisas recentes. Contudo, entre aqueles que acreditam que as mudanças climáticas estão em curso, 86% dizem que a causa principal é a ação humana, enquanto 12% afirmam que elas são provocadas principalmente por mudanças naturais do meio ambiente.

A porcentagem de entrevistados que acreditam na existência das mudanças climáticas tende a aumentar de acordo com o nível de escolaridade: de 87% entre pessoas com ensino fundamental para 93% entre aqueles com ensino superior. Com o aumento da renda, aumenta também a porcentagem de indivíduos que concordam que as mudanças climáticas estão acontecendo: eles são 90% entre os que recebem até dois salários mínimos e 97% entre os que declaram renda familiar de mais de dez salários mínimos.

Para além das variáveis sociodemográficas, os pesquisadores investigaram quais opiniões e valores dos entrevistados influenciam sua percepção sobre as mudanças climáticas. As análises evidenciaram que a chance de os brasileiros não acreditarem na existência do fenômeno é influenciada pelo grau de familiaridade com conceitos científicos: 5% dos graduados ou pós-graduados afirmaram que as mudanças climáticas não estão acontecendo; esse número sobe para 8% entre aqueles com ensino fundamental.

Não confiar na ciência também parece aumentar as chances de negar as mudanças climáticas, assim como estar inclinado a não vacinar os filhos. Entre os entrevistados que disseram que pretendiam vacinar seus filhos, apenas 4% negam a existência de mudanças climáticas; esse número foi de 18% entre os que afirmaram não pretender imunizar seus filhos. Ao mesmo tempo, aqueles que exprimem opiniões favoráveis à paridade entre gêneros têm chance maior de acreditar no fenômeno. Entre pessoas que mais concordam com afirmações sobre paridade, apenas 3% negam a existências das mudanças climáticas, contra 12% no grupo dos entrevistados que mais discordam.

Emerge, assim, uma interessante constatação. “Ainda que o conhecimento, familiaridade com noções básicas de ciência e a escolaridade sejam importantes para  a percepção sobre o tema, outros fatores associadas a visões de mundo e trajetórias de vida também são relevantes e influenciam a concordância ou negação dos indivíduos em relação às mudanças climáticas”, diz o sociólogo e físico italiano Yurij Castelfranchi, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), um dos autores da pesquisa de percepção pública sobre mudanças climáticas . “Esse é um indício de que o que está em jogo em fenômenos de negação de evidências científicas ou de vulnerabilidade à desinformação não é apenas falta de acesso à informação ou ao conhecimento, mas também valores e posicionamentos políticos.”