Por Rodrigo de Oliveira Andrade
O atual modelo bélico de combate às drogas no Brasil consolidou-se na ditadura (1964-85), em meio à ideia de que os usuários seriam criminosos e que o vício seria uma das consequências do envolvimento de jovens em movimentos revolucionários de esquerda. Esse discurso foi exaustivamente usado pela repressão para alimentar a teoria conspiratória da “ameaça comunista” e reforçar o que seriam os “verdadeiros” valores da nação.
“No contexto da Guerra Fria, essas representações reproduziam uma tradição anticomunista moral e conspirativa atualizada pela chamada ‘revolução nos costumes’”, explica o historiador Antonio Mauricio Freitas Brito, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que analisou em artigo a acusação das drogas como estratégia comunista a partir de documentos do Serviço Nacional de Informações, do Centro de Inteligência do Exército e do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica, entre outros órgãos repressivos.
Um documento confidencial produzido pela agência central do Serviço Nacional de Informações (SNI) em 1973 descreve a chamada “toxicomania” como “uma das mais sutis e sinistras armas do variado arsenal do [Movimento Comunista Internacional] MCI […] em sua busca contínua e subreptícia pelo domínio do mundo e escravidão da humanidade.”
Segundo a imaginação fértil e fantasiosa dos militares, essa estratégia teria sido aprovada pela Tricontinental, conferência de movimentos revolucionários da África, Ásia e América Latina realizada em Cuba em 1966, como forma de “desmoralização da juventude, por meio do estímulo ao consumo de alucinógenos” — pois a droga aceleraria a revolução, já que os viciados fariam tudo a favor do movimento revolucionário em troca da droga.
O discurso de repressão às drogas como forma de combate ao comunismo teve forte aderência na imprensa da época, com alguns dos principais jornais do país incluindo na pauta ações de combate a condutas imorais, sendo o uso de drogas abordado como um tipo de subversão que levaria os indivíduos a adotarem condutas inadequadas — como crimes e prostituição —, tornando-se, assim, um inimigo do Brasil.
Essa conclusão consta de uma pesquisa feita pelo sociólogo Júlio César Rigoni Filho, doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ele analisou 51 reportagens publicadas entre abril de 1964 e março de 1985 na Folha de S.Paulo — um dos principais jornais do país à época — para entender quais eram as representações sociais sobre o uso de drogas nos anos de chumbo.
Segundo Rigoni Filho, era comum a publicação de reportagens que destacavam casos de jovens envolvidos com drogas. Os pretos e pobres quase sempre eram retratados como potenciais criminosos ou traficantes, indivíduos oriundos da pobreza que se envolviam em vários crimes de forma irracional, movidos pelo desejo da droga. Por sua vez, os jovens brancos e de classe média apareciam como vítimas, doentes que haviam comprometido a própria vida e a convivência em sociedade, e que, por isso, precisavam ser isolados para tratamento e recuperação.
No entanto, independentemente da cor e da classe social, todos eram classificados como “subversivos” e inimigos do governo, podendo ser presos, torturados nas delegacias ou mortos em confrontos com a polícia. “As reportagens reforçavam uma narrativa que ajudava a manter o status quo da ditadura e a justificar uma lógica de vigilância como política antidrogas, sobretudo no meio universitário”, diz Rigoni Filho.
Em 1981, o 1º Exército circulou o documento “Tóxico e corrupção como instrumento da subversão”, tratando da categoria de “traficante ideológico”, que teria se unido ao traficante mercenário “na tarefa criminosa de corromper a juventude e subverter a ordem interna”. Para fundamentar a assertiva, o texto citava um suposto dirigente do Partido Comunista da União Soviética que defendia a estratégia de “disseminar o tóxico em meio à juventude, principalmente nas escolas e universidades”.
As drogas, nesse sentido, eram compreendidas pelo governo como uma das ameaças a serem combatidas nesses espaços, juntamente com as ideias políticas “antagônicas” que já estavam criminalizadas pelas diversas versões da Lei de Segurança Nacional (LSN).
Freitas Brito, da UFBA, destaca o caso de uma operação policial desenvolvida na Universidade de Brasília (UnB) em 1973, a qual esquadrinhou a vida de 33 moradores de residências da instituição. Segundo documento da SNI, aqueles jovens, “pederastas” e “viciados”, viviam em um “antro de corrupção de costumes” e “acentuada promiscuidade, onde tóxicos e sexo misturavam-se com impregnação ideológica de esquerda”.