Somos mais que o nosso cérebro

Fenômenos cognitivos não residem no cérebro, mas ocorrem por meio da interação entre sujeito e ambiente. Essa é a premissa do enativismo, abordagem filosófica que oferece explicações sobre processos cognitivos diferentes daquelas oferecidas pelas concepções tradicionais.

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Por Washington Castilhos

O enativismo é uma teoria filosófica nascida da intersecção entre filosofia, biologia e psicologia, a partir da reconhecida obra The Embodied Mind (1991). O livro tem exercido forte influência nas ciências cognitivas, incluindo a psicologia cognitiva e social. Essa corrente teórica faz parte de um movimento científico conhecido como cognição corporificada, o qual considera que os sistemas sensoriais e motores são fundamentais para o processamento cognitivo, e não apenas a mente. A teoria defende a ideia de que muitas características da cognição, sejam elas humanas ou não, são moldadas por aspectos de todo o corpo de um organismo. 

“A cognição emerge de um sistema complexo que engloba muitos fatores, e ocorre por meio das nossas ações, como organismos, em nossos ambientes”, explica a pesquisadora Nara Miranda de Figueiredo, professora adjunta no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, que há uma década vem se dedicando à pesquisa em filosofia da neurociência cognitiva e atualmente coordena o projeto “Enativismo: desenvolvimento e desafios”.

Na entrevista a seguir, a pesquisadora fala sobre o estudo e explica as diferenças entre a concepção tradicional cognitivista (mais focada no cérebro) e a concepção enativista (que confere centralidade ao corpo e à ação autônoma dos organismos no ambiente) com relação a processos cognitivos como a percepção, a imaginação e a interação. Na visão enativista, a percepção, por exemplo, não seria uma mera recepção passiva do mundo. “A percepção é um processo relacional envolvendo essencialmente fatores do ambiente e do organismo”, explica a entrevistada. 

Humanamente – O que é o enativismo? 

Nara Miranda de Figueiredo – O enativismo pode ser compreendido em contraposição à tradição cognitivista que sugere que a mente é análoga a um computador que processa informações. A proposta enativista é que somos seres complexos em constante processo, e que nossa cognição deve ser compreendida a partir da nossa relação – como organismos – com o ambiente em que vivemos, pois é por meio das ações dos organismos em seus ambientes que a cognição ocorre. E o ambiente é parte dos processos cognitivos. Assim, o pensar não está no cérebro, do mesmo modo que o voar dos pássaros não está nas asas e o dançar não está nas pernas, mas sim na complexa dinâmica que envolve o corpo, suas partes (incluindo o cérebro) e habilidades, o ambiente no qual ele está inserido, seu histórico de ações, dentre outros elementos. No caso dos humanos, há dimensões orgânicas, sensório-motoras e intersubjetivas que constituem as experiências de cada um e envolvem questões afetivas, sociais, políticas etc. A cognição é compreendida como relacional, e emerge de um sistema complexo que engloba muitos fatores. 

Imagem: Freepik

Humanamente – Tendo em vista essa contraposição entre o enativismo e a tradição cognitivista, poderia dar exemplos de concepções sobre a capacidade cognitiva humana que ambas as abordagens oferecem?

Figueiredo – As diferenças estão relacionadas à percepção, à imaginação e à interação. Perceber, em uma concepção tradicional cognitivista, é receber estímulos do ambiente e processar internamente esses estímulos. No caso das concepções pós-cognitivistas, a percepção é considerada ativa e participativa, isto é, os organismos percebem ao agir no ambiente e participam de certo modo da criação da realidade percebida. A gente pode compreender isso mais ou menos assim: imagine uma fonte de luz e um objeto compondo um ambiente. O objeto reflete a luz, certo? Se tivermos uma abelha com visão ultravioleta neste ambiente, por exemplo, sua estrutura vai permitir que ela vá na direção do néctar das plantas, isto é, o animal, com seu aparato cognitivo específico, participa da relação luz-objeto-organismo. Esta é uma explicação bastante simplificada, mas mostra como a realidade pode ser compreendida a partir de uma perspectiva relacional e sistêmica, em que os seres vivos participam agindo. Ao perceber, eu não percebo simplesmente texturas, cores e formas, para compor objetos em minha mente; percebo o que posso fazer com as coisas. Antes de saber o que é algo, percebo o que posso fazer com aquilo. Isso, naturalmente, depende da minha constituição física e das minhas habilidades. Então, a percepção é compreendida como um processo relacional envolvendo essencialmente fatores do ambiente e do organismo. 

Humanamente – E a imaginação? O que é imaginar algo? 

Figueiredo – Cognitivistas diriam que podemos imaginar um elefante, por exemplo, porque representamos um elefante na nossa mente. Os enativistas vão procurar evitar esse tipo de explicação porque preferem descrever esses fenômenos com base nas relações intersubjetivas que ocorrem no histórico de vida de um sujeito. Imaginamos um elefante porque fomos criados em uma cultura que nos proporcionou experiências com elefantes. Se havia elefantes nos livros infantis aos quais fui apresentada, ou se tive a experiência de ver um elefante no zoológico ou em seu habitat natural, tudo isso vai mudar meu modo de imaginar elefantes. Os aspectos afetivos e sociais estão sempre presentes e devemos evitar um recorte artificial como se houvesse algo simples e objetivo que seja simplesmente imaginar um elefante. Cada um de nós tem uma experiência diferente ao fazer isso. Então, na concepção cognitivista, imaginar um elefante é manipular representações mentais. Isso geralmente é suposto como ocorrendo no cérebro. No caso do enativismo, imaginar um elefante é entreter (enact) possíveis experiências, e isso envolve o sujeito como um todo, isto é, ocorre na dinâmica interativa do sujeito com seu entorno e histórico, envolvendo a situação como um todo, em toda sua complexidade. 

A discussão proposta por Evan Thompson [no livro Mind in Life: Biology, Phenomenology, and the Sciences of Mind, Belknap Press of Harvard University Press, 2007] sobre imagens mentais e a importância da análise fenomenológica para o estudo das imagens mentais é bastante importante aqui. Ele sugere que as experiências são holísticas, ao passo que as representações mentais são instanciadas por ativações neurais, dado seu caráter pictórico, e, por isso, não possuem essa característica. É importante esclarecer que os enativistas não rejeitam a importância do cérebro na cognição, mas sugerem que devemos situá-lo como um dos elementos relevantes para a cognição para melhor compreender seu papel. 

Humanamente – O que se busca com o enativismo? Pode-se compreendê-lo como uma filosofia de vida?

Figueiredo – O enativismo é uma teoria filosófica sobre a vida, a mente e a linguagem. Por ser uma teoria filosófica, possui teses e hipóteses sobre os tópicos dos quais trata; sobre a natureza desses fenômenos, isto é, sobre o que eles são. Por exemplo, a vida, de uma perspectiva enativista, é concebida como autopoiética, isto é, seres vivos são sistemas que se autoproduzem e se automantêm a partir de trocas de energia e matéria com o entorno. Todos os seres vivos são cognitivos em algum grau, pois, em virtude da automanutenção, as trocas energéticas são relevantes para eles e essa relevância constitui valor: elas podem ser mais ou menos benéficas. Daí a tese da continuidade entre vida e mente: todo ser vivo tem algum grau de mentalidade. A mente, por sua vez, é concebida como um processo relacional que ocorre por meio das ações (enaction = em ação) dos organismos com o entorno e com os outros. Então, agir é agir significativamente porque todos estamos imersos em uma teia de relações no mundo. Se falarmos em uma filosofia de vida, isso teria um sentido diferente. Seria no sentido de defendermos princípios e agirmos de acordo com um certo conjunto de crenças. Nós podemos pensar em uma filosofia de vida a partir do enativismo porque as teses enativistas nos levam a ter uma consciência maior da nossa relação com o mundo, de como nós somos parte de algo muito maior que nós, de como dependemos das coisas e pessoas ao nosso redor para nos mantermos e sermos como somos. Ele nos leva a uma ética do cuidado, nos leva a pensarmos em como devemos agir. 

Humanamente – O enativismo é influenciado por algum movimento ou corrente de pensamento?

Figueiredo – O enativismo foi muito influenciado pelo pensamento budista. A compreensão de que a cognição emerge da relação entre organismo e ambiente, por exemplo, é análoga à concepção budista de interdependência, a ideia de que os fenômenos surgem das relações entre as coisas. Outro ponto interessante e análogo ao budismo é que, segundo o enativismo, nós podemos nos compreender melhor se nos compreendermos como processos relacionais, e não a partir da ideia de um “eu” com uma essência fixa ou separada do mundo. Então, teorias filosóficas que oferecem modos de compreender as coisas podem nos levar a ter diferentes princípios e crenças e a agirmos de acordo com eles.  

Humanamente – Quais são os desafios mencionados no título do projeto de pesquisa? Tem a ver com mudanças de percepção?

Figueiredo – Sim,um pouco, porque temos que abrir mão de uma imagem bastante difundida de que a mente está na nossa cabeça, de que ela é interna, de que representamos um mundo que é externo a nós. Nós crescemos com essas ideias enraizadas, e mesmo que não paremos para pensar nelas, elas estão presentes na nossa cultura, no modo como falamos sobre a mente e o corpo. Isso vem desde a modernidade, com o chamado “dualismo cartesiano”, que sugere que somos antes de tudo uma mente pensante e que, se podemos pensar, podemos também inferir nossa existência. Nesse sentido, os desafios mencionados no projeto são mais sobre os próximos passos. Há desafios conceituais, metodológicos e empíricos/experimentais, que estão interconectados. Um dos desafios é se os desenvolvimentos nos quais estamos trabalhando vão ser satisfatórios para explicar processos amplamente reconhecidos como processos representacionais, como a linguagem, o raciocínio e a matemática. 

Humanamente – No que a senhora está trabalhando agora?

Figueiredo – Estou trabalhando diretamente em como a linguagem simbólica pode ser compreendida. Nós partimos da teoria dos corpos linguísticos e estamos propondo que o simbolismo é um desenvolvimento sofisticado que tem como base a condição essencial de valoração que seres vivos possuem na sua relação com o mundo. É fascinante! 

Humanamente – Por que isso é importante?

Figueiredo – Essa proposta, se bem sucedida, pode contribuir para explicar como os processos de alta ordem, como o raciocínio e a matemática, podem ser explicados sem a necessidade de recorrer a representações mentais, que é o principal desafio do projeto. A questão geral é de se a abordagem enativista é bem sucedida em manter seus pressupostos na consideração da cognição de alta ordem. Os desafios mencionados no título do projeto também estão relacionados à análise das dinâmicas sociais corporificadas em contextos de opressão de gênero e racial, como os vivenciados por pessoas negras em espaços sociais predominantemente brancos ou relações de gênero que envolvem sujeição. Esses desafios não dizem respeito diretamente a mudanças de percepção individuais ou emoções particulares sentidas por indivíduos, mas, sim, a compreender como emoções (medo, raiva, ansiedade, ressentimento) emergem na interação entre corpo e ambiente. O projeto propõe uma abordagem que desloca o foco das emoções como estados internos para sua dimensão relacional e corporificada, mostrando como essas experiências afetam a sociabilidade e os grupos sociais e reforçam estruturas de exclusão social. Assim, o desafio principal é reinterpretar o impacto das emoções na ética e na estrutura social a partir dessa perspectiva relacional e encarnada.

Humanamente – O projeto já tem resultados? O que se pretende produzir com o estudo?

Figueiredo – Muito da nossa produção é teórica, e cada um dos pesquisadores do projeto, individualmente ou em parceria, trabalha com especificidades de uma subárea da pesquisa. Muito ainda está em andamento, mas vale mencionar que um artigo, resultado de uma colaboração com os pesquisadores Giovanni Rolla [da UFBA] e Guilherme Vasconcelos [da UFMG], será publicado em breve na revista Language Sciences, sob o título Participatory sense-making and knowing-in-connection in VR (Produção participativa de sentido e conhecimento por conexão em realidade virtual). Neste texto, abordamos o conceito enativista de produção participativa de sentido, que é um dos pilares do núcleo de linguagem do projeto, no contexto das experiências em realidade virtual. Nosso foco é o desenvolvimento teórico, mas a produção resultante do projeto inclui a formação de conexões interdisciplinares de pesquisa, a implementação de laboratório de pesquisa empírica, a realização de workshop e de um evento de encerramento, apresentações de trabalhos em eventos científicos, orientações de pesquisa na graduação e pós-graduação, fortalecimento de redes de cooperação internacional, publicações de artigos em revistas científicas e capítulos de livros e divulgação científica.

Sobre o projeto

O projeto “Enativismo: Desenvolvimentos e Desafios” foi contemplado na Chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq. 

Coordenadora: Nara Miranda de Figueiredo (UFSM)

 

Imagem da capa: Freepik