Relações étnico-raciais ainda são pouco abordadas nas licenciaturas

Das 9.402 ementas de 286 cursos de licenciaturas de 20 universidades federais da região Nordeste, apenas 1.190 abordam a temática étnico-racial, indica estudo da UFBA. Os dados levantam a discussão sobre a importância da educação antirracista na formação de futuros professores.

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Por Aline Weschenfelder

Os professores do ensino fundamental e médio estão preparados para tratar de questões étnico-raciais em sala de aula? Pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA) estão analisando como se dá o debate acerca desse tema nos cursos de licenciatura das universidades federais do Nordeste. Os resultados indicam que o tema ainda é pouco abordado nos cursos de formação docente.

O ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena na educação básica é obrigatório desde 2003, de acordo com a Lei 10.639, do mesmo ano. Para que a lei seja devidamente cumprida, é preciso que os educadores estejam bem capacitados para tratar do assunto em sala de aula. Para isso, a Lei 12.228, de 2010, estabelece incentivos às instituições de ensino superior para incorporar temas como pluralidade étnica e cultural da sociedade brasileira na formação docente.

No estudo da UFBA, os pesquisadores analisaram 9.402 ementas de 286 cursos de licenciaturas oferecidos por 20 universidades federais da região Nordeste. A temática étnico-racial apareceu em apenas 1.190 delas.

Alguns cursos, como os de história e pedagogia, tendem a oferecer temas relacionados a questões étnico-raciais, como o racismo, a história e cultura africanas e teorias raciais de forma mais enfática, aprofundando o pensamento crítico dos professores em formação.

“A maioria dos cursos, no entanto, limita-se à folclorização, utilizando poucas referências de autores negros e se abstendo da temática acerca do conceito de raça, racismo e discriminação”, destaca a psicóloga Renata Meira Véras, professora da UFBA e coordenadora do projeto.

crédito: Acervo Sérgio Amorim/representação da ancestralidade

Essa constatação se deu, principalmente, nos cursos de biologia, psicologia, química e física. Considerando que as graduações analisadas são licenciaturas que devem preparar professores para a educação básica em uma sociedade ainda considerada racista, todos os cursos deveriam contar com pelo menos uma disciplina que trate do assunto, de modo a provocar reflexão e não reforçar estereótipos. Na prática, porém, não é o que acontece. Nas artes, por exemplo, foi observado que a temática étnico-racial trata apenas de tópicos como cultura popular, capoeira e culinária. “Esse tipo de abordagem acaba reafirmando o olhar do colonizador, de estereotipias”, diz a psicóloga.

Segundo Véras, a importância de falar sobre raça na universidade não é apenas um benefício que reflete na formação dos professores, mas também no entendimento de sua condição enquanto sujeito. “Na Bahia, mais de 80% da população se declara negra”, diz. “Estar em um ambiente que discute abertamente sobre essas questões torna os estudantes de licenciatura, sobretudo os negros, muito mais empoderados e capazes de lidar com o assunto ao se tornarem professores”, complementa.

Com base nos resultados, os autores querem propor ações efetivas, como uma reformulação curricular direcionada a todos os cursos de licenciatura das universidades federais do Brasil, a começar pela Bahia.

“Isso é importante para que a formação dos professores seja coerente com o que determina a lei, visando o preparo de cidadãos conscientes a respeito dos privilégios conferidos a determinada raça”, afirma a psicóloga.

Para a segunda etapa da pesquisa serão feitas entrevistas com 40 professores das universidade que tiveram as ementas dos cursos de licenciatura analisadas. Os pesquisadores querem saber como os docentes reúnem o material sobre as questões étnico-raciais, elaboram as ementas dessas disciplinas e preparam as aulas.

“Formar o cidadão anti-racista é um propósito para toda a sociedade. Precisamos criar disciplinas que deem conta dessa discussão em todos os cursos”, conclui Véras.

Para o educador Flávio Santiago, pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), projetos como o da UFBA são importantes, principalmente porque visam o respeito e a equidade social.

“Essas pesquisas contribuem com o contato e a reflexão sobre as relações étnico-raciais na sociedade”, diz. “Nossa formação deve estar relacionada à ideia de que o racismo e as desigualdades não podem fazer parte do projeto profissional que construímos, mas sim dizimados”.

Santiago explica que a educação antirracista é aquela que enfrenta os privilégios construídos pela lógica racial e que valorizam a branquitude na sociedade. “Devemos chamar a atenção para o fato de que a nossa sociedade, que tem como base princípios arcaicos, é estruturada a partir de uma questão racial que deve ser superada”, diz. “Também é preciso dar subsídios para que não exista um apagamento ou rompimento das origens dessas pessoas, além de trazer a reflexão para os não negros”, acrescenta.

Para o pesquisador, as práticas antirracistas em sala de aula deveriam ter início já na formação docente, que costuma ser pautada por uma perspectiva centrada na raça branca europeia. “Quantos professores negros e indígenas temos nas universidades brasileiras? Quais são os teóricos negros e indígenas que estudamos no ensino superior?”, questiona Santiago.

Racismo desde a educação infantil

A pesquisa realizada na UFBA converge com os trabalhos desenvolvidos por Santiago, autor de tese e dissertação que tratam sobre relações raciais. Em sua pesquisa de mestrado, realizada em um Centro de Educação Infantil da região metropolitana de Campinas, em São Paulo, com o objetivo de examinar como o processo de racialização impacta na construção das culturas infantis, o educador constatou a presença de uma “pedagogia da branquitude”, embasada em um modelo educacional com propósitos de reprodução de preconceitos direcionados às crianças negras. Ele observou que essas crianças percebem o racismo presente nas posturas adotadas por profissionais que trabalham no Centro de Educação Infantil, e que estas reagem aos enquadramentos que as fixam em posições subalternas.

Os estudos do pesquisador mostram como desde muito cedo as crianças negras já sofrem práticas racistas, percebendo a desigualdade. Isso se dá, por exemplo, a partir do tratamento diferenciado ou da estrutura da creche, que não tem pentes e cremes adequados para pentear os cabelos das crianças negras.

imagem: freepik

“A estrutura racista reverbera nas instituições de ensino infantil, afetando crianças que ainda nem completaram um ano de idade”, diz Santiago. “Quando essas crianças chegam ao ensino fundamental elas estão desmotivadas, pois não veem sentido naquela instituição que faz mal à existência dela enquanto ser humano”, explica.  

 À luz de seus estudos, Santiago acredita que o racismo presente na escola é reflexo do racismo observado na sociedade. O pesquisador defende que “a construção de uma educação antirracista e das relações étnico-raciais não deve se limitar a disciplinas específicas, mas desde a formação de professores da educação infantil até o ensino superior, em todos os cursos de graduação”.

Sobre o projeto:

O projeto  “A agenda etnicorracial na formação inicial de professores nas Universidades Federais do Nordeste” foi contemplado na chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq.

Coordenadora:  Renata Meira Véras (UFBA)


Imagem da capa/desktop: releitura em aquarela feita por Mariana Sguilla (2022) para a obra “A redenção de Cam”, de Modesto Brocos (1895)