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Pesquisa investiga seletividade das escolhas do Ministério Público

Acordos de não persecução penal foram além da Lava Jato e hoje são oferecidos em casos que vão dos atos antidemocráticos a crimes ambientais. Mas quais fatores explicam o oferecimento ou não desses acordos pelo órgão?

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Por Washington Castilhos

Até março de 2025, dos 1.039 condenados pelos atos antidemocráticos do dia 8 de janeiro de 2023, 542 (52% do total) foram beneficiados por punições alternativas ao terem firmado acordos de não persecução penal (ANPP) junto à Procuradoria-Geral da República. São pessoas que não participaram diretamente dos ataques aos prédios públicos. Para fecharem o acordo e não irem a julgamento, elas confessaram os crimes e foram punidas com multas que variam de R$1 mil a R$20 mil, proibição do uso de redes sociais e participação obrigatória em um curso sobre democracia. A negociação levanta discussões, especialmente entre os que defendem que os crimes praticados em Brasília naquele domingo deveriam ser todos inegociáveis. Mas o que é o ANPP e a quem ele pode ser oferecido?

O mecanismo, criado pelo Ministério Público Federal, foi incluído na lei penal pelo Pacote Anticrime (Lei 13964), em vigor desde 2019. É uma medida alternativa à pena, que pode ser aplicada em casos de crime sem violência ou grave ameaça e que tenha pena mínima inferior a quatro anos. Pelo sistema, o MPF pode oferecer ao investigado um acordo no qual ele confessa o delito e se compromete a reparar o dano cometido. Em troca, o órgão pode determinar prestação de serviços à comunidade, pagamento de multa, ou ainda outras condições. E a pessoa não poderá ter direito a outro em um prazo de cinco anos.

A introdução do acordo no sistema de justiça brasileiro ampliou o leque de ferramentas negociais do Ministério Público, aumentando a discricionariedade de seus membros e sua autonomia institucional”, explicam autores de um projeto de pesquisa em que se investiga quais fatores justificam o oferecimento ou não de ANPPs pelo órgão. Para tanto, o grupo de pesquisadores está realizando um levantamento dos acordos oferecidos pelas unidades do MPF no país.

O mecanismo é objeto de estudos da equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) desde que surgiu, como bandeira da Operação Lava Jato. Assim, os primeiros dados de acordos começam no Paraná.

“Ao olharmos para um tema que estava no calor dos acontecimentos, tínhamos a convicção de que esse instituto de justiça negocial teria surgido da Lava Jato para manter o foco nos casos de corrupção. Essa dinâmica de fato se deu por conta da operação. Mas, ao longo do tempo, vimos como ele foi se envolvendo com acontecimentos da história brasileira”, relata a socióloga Lígia Madeira, professora associada do Departamento de Ciência Política da UFRGS. “Começamos a entender que o MPF tinha uma agenda focada no combate à corrupção, nos crimes contra o sistema financeiro nacional e na lavagem de dinheiro, mas a cúpula do órgão foi além dessa bandeira e ampliou sua autonomia para outros campos”, complementa. 

Antes do Pacote Anticrime, o ANPP era previsto desde 2017 na Resolução 181 do Conselho Superior do Ministério Público. No entanto, foi com a inclusão no sistema processual penal que o instrumento consensual se consolidou como alternativa à pena. 

Autora do livro O desenvolvimento institucional do Ministério Público no combate à corrupção (1988-2018), no qual evidencia como o MPF, anteriormente um órgão discreto, transformou-se em uma instituição central na política brasileira em três décadas, especialmente com a ascensão da Lava Jato, a doutora em política pública Daiane Londero (UFRGS), também pesquisadora da equipe, explica que o acordo tem sido aplicado em todas as searas possíveis.

“O ANPP está em processo de sedimentação, ainda está se moldando. Surgiu como bandeira da Lava-Jato e acaba transitando por nichos diferentes. Essa agenda vem pressionando o Legislativo”, afirma. 

Segundo as pesquisadoras, a questão dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro é interessante como reflexão. No primeiro momento, lembram elas, houve resistência do MPF em oferecer o acordo nesses casos. Em um segundo momento, decidiu-se por fazer uma divisão entre os que não participaram diretamente dos ataques e aqueles que entraram e depredaram as sedes dos Três Poderes. Estes últimos não tiveram direito ao acordo; os que estavam nos acampamentos, sim. 

Relatório do gabinete do ministro Alexandre de Moraes de janeiro de 2025 indica que naquele 8 de janeiro 2.172 pessoas foram presas em flagrante. Segundo o STF, 246 acusados tiveram direito ao ANPP, mas recusaram o acordo.   

O ANPP não foi oferecido àqueles que cometeram crimes graves envolvendo violência ou grave ameaça, já que o acordo não se aplica nestas situações. Essas 251 pessoas respondem a crimes como abolição violenta do Estado Democrátivo de Direito, golpe de Estado, associação criminosa, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.  

 

ANPP em casos menores

No governo de Jair Bolsonaro, o ANPP foi bastante usado em casos de recebimento indevido do auxílio emergencial para evitar processos que poderiam congestionar as varas criminais da Justiça Federal. Entre os investigados, pessoas de alto poder aquisitivo – como parentes de deputados, empresários com patrimônios milionários e indivíduos que residiam na Europa, além de servidores públicos e até pessoas mortas, cujos nomes eram usados para saques. 

“No caso do auxílio emergencial indevido, vê-se o propósito de aplicar o acordo em casos muito pequenos. Nessas situações, as pessoas devolvem o dinheiro e o acordo não é processado. Tudo é resolvido pelo MPF e não passa por juiz, que vai apenas homologar o acordo”, explica Londero. Embora algumas das denúncias relacionadas ao auxílio tenham saído na imprensa (incluindo nomes), o acordo é sigiloso. “Há a proteção do acusado que, para não virar réu, repara o crime que cometeu e continua sua vida sem os malefícios de uma ação judicial criminal”. 

O MP chegou a levantar a possibilidade de aplicar o acordo em caso de racismo, mas, em 2023, o STF decidiu que não era possível. O Tribunal também decidiu que não caberia aplicá-lo em casos de homofobia. As decisões colocam limite às possibilidades de acordo e, de certo modo, à autonomia do MP.

“O MP é uma instituição autônoma cuja luta por autonomia nunca acaba”, observa Madeira. “Mas o órgão não tem capacidade de gerenciar tudo, o que entra em conflito com a sua avidez por autonomia”.

Além do levantamento e análise dos acordos, o estudo da UFRGS inclui entrevistas com procuradores em posição-chave de todo o país. Os resultados devem gerar artigos e um livro.

De acordo com o MPF, de 2019 a 2022 foram propostos 21.466 acordos em todo o Brasil e, segundo um levantamento do órgão de 2021, os crimes mais comuns eram contrabando ou descaminho, estelionato majorado, uso de documento falso, moeda falsa, falsidade ideológica e crimes contra o meio ambiente.  

Do projeto de pesquisa da UFRGS derivou um subprojeto focado nos acordos para casos de crimes ambientais. Nele, a equipe mapeia os acordos e estados brasileiros onde estes estão sendo aplicados, de acordo com os tipos de crimes. Este é o tema da próxima matéria desta série sobre o ANPP.   

Sobre o projeto 

O projeto “A aplicação do Acordo de não Persecução Penal (ANPP) pelo Ministério Público Federal: discricionariedade e seletividade em suas escolhas de política criminal” foi contemplado na Chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq. 

Coordenadora: Melissa de Mattos Pimenta (UFRGS)