Dicionário explica origem de expressões do debate político atual

Segunda edição de “Termos ambíguos do debate político atual: Pequeno dicionário que você não sabia que existia” resgata a história e o significado de 14 verbetes, e explica como eles passaram a ser usados politicamente no Brasil

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Por Rodrigo de Oliveira Andrade

Nos últimos anos, o debate político no Brasil foi atravessado por expressões e termos como “cidadão de bem”, “ideologia de gênero”, “marxismo cultural” e “globalismo”, entre outros. Ao mesmo tempo, palavras que pareciam ter definição sólida, como “família”, “patriotismo” e “liberdade”, ganharam outras leituras.

Um dicionário organizado por pesquisadores do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), propõe-se a explicar a história e o significado desses e outros verbetes, e como eles passaram a ser usados politicamente — em geral, como categorias de acusação.

A primeira edição da obra, intitulada “Termos ambíguos do debate político atual: Pequeno dicionário que você não sabia que existia”, foi lançada em 2022 em duas versões com downloads gratuitos, uma voltada a quem tem ensino superior e outra, simplificada e de leitura mais fácil, destinada a quem está no ensino médio.

A edição explorava oito verbetes, com temas que têm sido absorvidos pela sociedade brasileira desde fins dos anos 1990 e que hoje fazem parte do vocabulário político comum e corrente. A segunda edição, lançada em dezembro de 2023 também em duas versões, ampliou o número de verbetes para 14. A pesquisadora Sonia Corrêa, coordenadora do SPW, explica que o vocabulário da direita está sempre em movimento, fazendo com que o dicionário precise ser sempre atualizado, “o que não significa que os verbetes da primeira edição perderam validade”.

“O livro pretende esclarecer acadêmicos, estudantes e formadores de opinião sobre a história e o percurso desses termos para que eles possam decidir se desejam ou não usá-los”, afirma Corrêa, destacando que todos os verbetes têm uma ilustração que sintetiza seu significado, produzida pela jornalista e quadrinista Carol Ito, vencedora do Troféu Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.

A primeira vez que se ouviu falar em “ideologia de gênero” no Brasil foi em julho de 2003. Quem usou a expressão foi o deputado federal Elimar Damasceno, do Partido de Reedificação da Ordem Nacional (Prona), em reação a pautas progressistas que haviam sensibilizado parte da sociedade para o fato de “gênero” designar o papel desempenhado por um dos sexos, não importando se nasceu homem ou mulher.

O termo circulou bastante desde então, ganhando força a partir de 2014, com debates sobre o novo Plano Nacional de Educação. “À época, núcleos religiosos conservadores fizeram campanhas de ataques contra propostas de currículo escolar que incluíssem temas como igualdade de gênero e diversidade sexual”, explica Corrêa.

Anos antes, em 2011, setores conservadores da sociedade e do Congresso já haviam feito campanha contra o projeto Escola sem Homofobia, o qual previa a distribuição em todas as escolas do país de um material de formação sobre questões de gênero e sexualidade. Segundo as acusações, o material — pejorativamente alcunhado de “kit gay” —,  seria responsável por “estimular o homossexualismo e a promiscuidade”. O governo à época cedeu à pressão e suspendeu o projeto.

Por sua vez, a expressão “cidadão de bem” costumava aparecer em conversas informais entre amigos e familiares, e em noticiários sensacionalistas. Nos últimos anos, no entanto, passou a ser amplamente usada em campanhas eleitorais, ganhando centralidade e novos contornos. Antes utilizada para designar “não criminosos”, a expressão passou a nomear também condutas políticas. “A separação entre ‘cidadão de bem’ e ‘bandidos’ seria usada para opor ‘direita’ e ‘esquerda’, com o objetivo de criminalizar o campo progressista e as pautas inclusivas”, afirma Corrêa.

Tanto a primeira quanto a segunda edição do dicionário foram desenvolvidas de forma colaborativa com pesquisadores de várias instituições. Cada um ficou responsável pela explicação de um ou mais verbetes. O linguista Rodrigo Borba, professor associado da UFRJ e responsável pelos verbetes sobre “ideologia de gênero” e “linguagem neutra”, explica que a estratégia da direita tende a ser a de se apropriar de palavras, conferindo-lhes novos sentidos para que circulem mais facilmente.

Ele acrescenta que o léxico conservador é esquemático e costuma ser reproduzido com pouco questionamento pela imprensa. “Ele é mal compreendido até mesmo pelos políticos que dele fazem uso”, destaca. “É como se esses bordões sempre tivessem existido, ninguém se pergunta de onde vieram, quando e como foram criados e a que se referem.” O linguista lembra ainda que as palavras escolhidas pela direita também costumam ser consagradas, já sedimentadas na linguagem e dotadas de certa autoridade social.

Os pesquisadores esperam incluir outros verbetes em novas atualizações do dicionário. A expectativa é que o material circule não apenas nas escolas ou entre movimentos da sociedade civil e políticos, mas também nas famílias. “Essas palavras aparecem nas conversas na mesa do jantar e as pessoas brigam muito por causa delas”, afirma Borba. “Este é um bom material para educação política de todos e todas.”