A novela como recurso de promoção da cidadania

O empoderamento da Maria Bruaca e a brasilidade da mulher que vira onça e do “velho” que vira sucuri acionaram temáticas cidadãs e promoveram debates sociais que perduraram meses após o fim de Pantanal, indicam estudos de uma rede de pesquisa sobre ficção televisiva

Notícias

Por Washington Castilhos

Como a telenovela brasileira mobiliza temáticas cidadãs por meio de suas histórias e personagens e se converte de narrativa ficcional em um espaço público de debate da realidade do país? Tomando o remake da novela Pantanal (2022) como estudo de caso, pesquisadores da Rede Obitel Brasil produziram variadas análises que respondem – cada uma a seu modo – a essa pergunta. Os estudos fazem parte do projeto “A ficção televisiva como recurso de promoção da cidadania” e seus resultados estão reunidos em um e-book a ser lançado em um seminário entre os dias 6 e 8 de outubro, na sede da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro. 

O combate ao racismo, machismo e preconceito contra pessoas LGBTQIAPN+, e a defesa da preservação do meio ambiente são alguns dos temas sociais pautados pela novela e explorados nas análises.   

“Apostamos em uma história na qual a questão da cidadania aparece das mais variadas formas”, relata Maria Immacolata Vassallo de Lopes, professora da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e coordenadora do projeto que reuniu 10 grupos de pesquisa, oriundos de 12 instituições.

Uma equipe da USP se debruçou sobre as famílias do protagonista (José Leôncio, vivido pelo ator Marcos Palmeira) e do antagonista (Tenório, interpretado por Murilo Benício) a fim de verificar como as relações de poder operam no núcleo familiar desses personagens. Os pesquisadores analisaram 36 capítulos da novela – os seis primeiros, exibidos durante sua semana de estreia; aqueles de maior audiência, exibidos entre a segunda e a vigésima sexta semana; e os cinco últimos episódios. 

Eles observaram que, entre as principais discussões e conflitos presentes nas dinâmicas das famílias, as questões de gênero sobressaíam, especialmente na história da personagem Maria Bruaca (Isabel Teixeira), marcada pela violência psicológica, moral e patrimonial

Maltratada por décadas pelo marido – Tenório, que a chama de “Bruaca” para intencionalmente depreciá-la –, ela descobre que ele tem outra família em São Paulo, rebela-se contra a opressão do esposo, traindo-o com um peão da fazenda, e é expulsa de casa por ele. Ao ser acolhida pela família do protagonista José Leôncio, ela contrata uma advogada e pede o divórcio, mas tem de lutar por seus direitos, negados pelo ex-marido abusador.    

“É uma trajetória pedagógica”, avalia Immacolata. “Tradicionalmente, a novela não seria um lugar em que as pessoas buscariam informações sobre os direitos da mulher e a questão da violência doméstica”. 

Na época da novela, o divórcio da personagem gerou debates públicos, especialmente nas redes sociais e em blogs e sites voltados aos direitos da mulher. 

Ainda em relação à questão de gênero, um grupo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) analisou as expressões de masculinidade e feminilidade a partir do casal protagonista Jove (Jesuíta Barbosa) e Juma Marruá (Alanis Guillen). Alicerçados nas reflexões teóricas dos estudos queer, os pesquisadores observaram como as características das personagens – ele, sem adotar performances masculinas esperadas pelo pai e pelos outros homens da fazenda, e ela afastada da ideia de feminilidade – desafiaram noções ainda hegemônicas de amor romântico e das relações entre homens e mulheres.

A questão ambiental também foi atualizada em relação à versão original de 1990. “Pantanal é uma telenovela ecológica. A questão da sustentabilidade se dá por meio da defesa do meio ambiente, articulada a um debate contemporâneo em torno do tema”, afirma a coordenadora do projeto. 

A novela abordou a questão da grilagem, da violência no campo associada a disputas de terra, e o embate entre o conservador e o novo, representado nas discussões entre o pai fazendeiro José Leôncio – adepto de técnicas tradicionais de cuidado da terra – e o filho Jove – defensor de técnicas mais sustentáveis. A partir da análise dos arcos narrativos das duas personagens, uma equipe da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) estudou os modelos de produção com sustentabilidade socioambiental e de tecnologias utilizadas, considerando as práticas da economia sustentável.

A defesa do meio ambiente foi explorada nas falas em torno da chalana, que não tinha mais rio para navegar por conta das secas na região, e na figura do Velho do Rio (vivido por Osmar Prado), entidade espiritual lendária que protege os rios, animais e matas. O realismo fantástico retratado pela personagem é herança de um recurso estético estilístico da literatura latino-americana, bastante explorado na teledramaturgia brasileira a partir da novela Saramandaia (1976), de Dias Gomes, com seus personagens criando asas ou explodindo.

A análise de personagens que mesclam realismo e encantamento foi o foco do estudo da equipe da Universidade Anhembi Morumbi (UAM). Em diálogo com a cartografia do antropólogo e filósofo colombiano Martín-Barbero (1937-1921), o estudo mostra como as temáticas cidadãs manifestadas por meio dos personagens encantados – Velho do Rio, Juma Marruá e o “cramulhão” – podem inspirar uma visão crítica e engajada do público em relação à sociedade.

As histórias da mulher que vira onça (Juma) e do homem que vira sucuri (Velho do Rio) também inspiraram os pesquisadores a empreender análises sobre a questão da brasilidade e da identidade nacional. “Pantanal mostra um Brasil que as pessoas não conhecem, e isso tem a ver com o conceito de ‘Brasil profundo’, que aparece em Os Sertões, de Euclides da Cunha. Convivemos com as ambivalências, as contradições e as desigualdades, mas falamos em um só país. Aí está a questão da identificação e do reconhecimento”, analisa Immacolata. 

Além das análises de texto e cenas da novela, os pesquisadores do projeto também desenvolveram estudos de recepção. Em um deles, a equipe da Universidade Federal da Bahia (UFBA) observou que os temas sociais tratados na obra ainda repercutiam nos ambientes online após o fim da novela. O grupo identificou três temas – machismo, homofobia e meio ambiente – que repercutiram na plataforma X (antigo Twitter) 15 meses após a finalização do folhetim. 

Agora, os pesquisadores estão aprofundando a investigação a partir de buscas no Google a fim de identificar como a novela e as questões sociais a ela associadas repercutiram nas mídias jornalísticas, e de que modo essa repercussão pode ter impactado o debate público. “A questão é pensar como a novela mexe com a realidade”, complementa Maria Immacolata.

A primeira versão de Pantanal, de 1990, rendeu o livro Pantanal: a reinvenção da telenovela, de Arlindo Machado (1949-2020), mas esta é a primeira vez que se faz um trabalho coletivo sobre a novela. 

Entender a novela como recurso comunicativo e de construção da cidadania é o objetivo da Rede Brasileira de Pesquisadores da Ficção Televisiva – Obitel Brasil, criada em 2007 como o braço brasileiro do Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva (Obitel), fundado em 2005 em Bogotá, Colômbia. O e-book, a ser lançado no seminário da Rede em outubro com os resultados dos estudos, será a oitava publicação da Coleção Teledramaturgia.

 

Ilustração da capa: Sunça

 

Sobre o projeto

O projeto “A ficção televisiva como recurso de promoção da cidadania” foi contemplado na Chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq.

Coordenadora: Maria Immacolata Vassallo de Lopes (USP)