Experiências de vida e mobilidades nos presídios

Pesquisadores analisam o modo como pessoas encarceradas e suas famílias vivenciam e produzem fluxos dentro e fora dos presídios do Norte e Nordeste do Brasil, e de que maneira esses movimentos contribuem para a formação de redes de proteção, poder e mercado nesses locais.

Notícias

Por Rodrigo de Oliveira Andrade

Os massacres e rebeliões em presídios de Roraima, Amazonas e Rio Grande do Norte no início de 2017 explicitaram o domínio das facções criminosas em diferentes estados e expuseram mais uma vez uma das principais mazelas do sistema prisional brasileiro: a superlotação. Anos depois, medidas para desafogar o sistema pouco avançaram. Atualmente, o Brasil figura como o terceiro país com a maior população carcerária do mundo: pouco mais de 832 mil presos, segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho.

Os eventos daquele ano também contribuíram para reacender o interesse acadêmico pelo cárcere. Nos últimos anos, estudiosos de diferentes áreas e instituições de ensino e pesquisa do país têm observado que o sistema prisional brasileiro parece operar como um dispositivo de gestão de populações, regulando fluxos de pessoas, coisas e informações a partir de diferentes dinâmicas e com efeitos difusos sobre a vida social como um todo.

Imagem: Sam Balye/Unsplash

O sociólogo Fernando de Jesus Rodrigues, da Universidade Federal do Alagoas (Ufal), tem se debruçado sobre esse dispositivo micropolítico ao lado de outros pesquisadores a partir de experiências de indivíduos encarcerados e de suas famílias. Eles estão realizando uma série de entrevistas com presos, ex-presidiários e seus parentes nos estados de Alagoas, Ceará, Maranhão e Amazonas para tentar compreender as maneiras como eles vivenciam e produzem fluxos e mobilidades dentro e fora das prisões, e de que maneira esses movimentos contribuem para a formação de redes de proteção, poder e mercado nos presídios.

“Nas entrevistas que temos feito, chama-nos a atenção o modo como a manutenção da vida dos presos dentro das penitenciárias se entrelaça com diferentes mercados, legais e ilegais, dentro e fora das cadeias, e como o próprio sistema carcerário, por meio de conflitos com facções criminais e forças de segurança, colabora para a produção e regulação de mercados ilegais, baseados no comércio de drogas e objetos eletrônicos, como celulares”, ele destaca.

Rodrigues explica que as famílias dos presos são as principais responsáveis por fornecer alimentos, medicamentos, produtos de higiene e roupas aos que cumprem pena em estabelecimentos carcerários no Brasil. “As refeições nos presídios são de péssima qualidade e os itens básicos fornecidos pela administração penitenciária, como sabonete e pasta de dente, insuficientes”, diz o sociólogo. Segundo ele, o funcionamento das prisões e a própria manutenção da vida dos presos dependem, em grande medida, de ampla mobilização e contínua articulação de atores sociais em economias fora das instituições carcerárias.

Não raro, essas economias se baseiam na participação de membros das famílias dos presos em atividades criminosas, como roubo e tráfico de drogas. “É curioso pensar que o funcionamento dos presídios, em parte, depende de práticas ilegais externas”, comenta o pesquisador. E ele acrescenta: “essa dinâmica contribui para a promoção de um fluxo de mercadorias que alimenta uma lógica econômica e de disputas de poder dentro dos presídios”.

Os pesquisadores envolvidos no projeto têm um longo histórico de pesquisas sobre o cárcere, e também de articulação com redes de interlocutores familiares envolvidos em movimentos que lutam para garantir condições básicas de vida para seus parentes encarcerados. Os resultados preliminares das entrevistas com essas pessoas têm apontado para uma tentativa mais incisiva das forças de segurança de exercer um controle ainda maior sobre as prisões, por meio, sobretudo, da redução de alguns direitos básicos dos detentos.

Esse processo, segundo Rodrigues, teve início na pandemia. Em março de 2020, quando os primeiros focos da Covid-19 começaram a despontar no país, o governo federal decidiu suspender a transferência de presos e as visitas de familiares, interrompendo o sistema de abastecimento de itens que ajudam a garantir as condições mínimas de sobrevivência dos detentos. “Isso fez com que eles passassem mais tempo confinados em celas superlotadas, desencadeando uma sensação de isolamento e insegurança”, diz o pesquisador. O resultado foi um aumento dos casos de ansiedade e depressão, e o agravamento do quadro daqueles que já sofriam com algum tipo de transtorno mental. “A estratégia, além de não ter contido o vírus dentro das prisões, reforçou ainda mais o caráter hermético do sistema penitenciário.”

Essa realidade se mantém em 2023, mesmo com a melhora das condições sanitárias no país. Isso tem feito com que os presos fiquem mais sujeitos a dinâmicas econômicas ilegais, acirrando a violência dentro dos presídios e aumentando o risco de rebeliões. “Os presos que não se sujeitam a determinados acordos ou alianças sofrem sanções ou retaliações de outros presos e, muitas vezes, dos próprios funcionários dos presídios”, comenta Rodrigues. “O controle da população prisional no Brasil é fortemente intermediado por mercados e violência, e essa dinâmica é talvez a principal responsável por produzir parte importante da letalidade dentro do sistema carcerário nacional.” Um dos objetivos do projeto é analisar as características dessas interações dentro de uma lógica de produção de vida e mercado.

imagem: freepik

Ele cita o exemplo de um aparelho celular, cuja entrada em presídios costuma movimentar diferentes atores, externos e internos, como familiares dos presos e agentes carcerários. “A entrada desse objeto desencadeia outros movimentos que realimentam esse mercado ilegal interno”, explica Rodrigues. “Um preso que descobre o esquema pode denunciá-lo para facções rivais ou para os agentes prisionais, que fazem uma batida na cela e confiscam o aparelho, usando-o para chantagear o preso com outras demandas.” Essas dinâmicas de controle do fluxo das mercadorias, a intensidade do giro desses produtos e do dinheiro, associada à violência, realimenta a construção do valor das mercadorias em circulação.

“A análise dessas experiências dentro das prisões nos ajuda a entender o modo como se vive e produz justiça nas periferias, e também sua própria economia, fortemente baseada na informalidade, no uso da violência para acessar oportunidades, e em mercados ilegais que movimentam muito dinheiro”, completa o pesquisador. O grupo também irá se debruçar sobre as táticas de controle da população carcerária empregadas pela administração prisional, sobre como tecnologias militarizadas de disciplina são instituídas, como as relações entre a administração e o judiciário incidem sobre essas táticas e como isso se relaciona com coletivos de presos e movimentos de familiares.

Sobre o projeto

O projeto Políticas e fluxos prisionais: Experiências de vida em torno dos cárceres no Norte e Nordeste do Brasil foi contemplado na Chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq.

Coordenador: Fernando de Jesus Rodrigues (Ufal)