Por Washington Castilhos
“Algum leitor conspícuo desejaria antes que Mendonça não fosse tão assíduo na casa de uma senhora exposta às calúnias do mundo. Pensou nisso o médico e consolou a consciência com a presença de um indivíduo. A presença deste gentil pimpolho, achava Mendonça que salvava a situação”. No conto Miss Dollar, de 1869, Machado de Assis utiliza o termo pimpolho para se referir ao jovem personagem que acompanhava os encontros do médico Mendonça com sua prima, a viúva Margarida. A acepção de “criança/rapaz” atribuída à palavra, comum em textos literários e no linguajar popular, provavelmente tem suas raízes na definição que o naturalista italiano Domenico Vandelli conferiu ao vocábulo em 1788, ao empregá-lo como sinônimo de “broto” de uma planta. O verbete consta no Dicionário Histórico de Termos da Biologia, projeto em construção e primeiro do gênero no Brasil.
O dicionário online – elaborado por pesquisadores da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) – já está no ar e conta com 70 verbetes até o momento. “A ideia é que finalize com 300 termos”, informa o linguista e coordenador do projeto Bruno Maroneze, doutor em Língua Portuguesa pela USP e professor associado da UFGD.
O objetivo do projeto é descrever, através da História, o léxico científico da língua portuguesa na área da Biologia. A intenção é que as informações de cada verbete possam ser úteis a biólogos, professores de Biologia, linguistas e historiadores da ciência, além do público em geral interessado em Etimologia e História.
O trabalho dos autores inclui verificar se as palavras vêm do latim ou do grego e se foram criadas em português, identificar a datação dos termos – isto é, suas ocorrências em épocas anteriores –, descrever as estruturas morfológicas (a formação das palavras) e as mudanças de forma e significado pelas quais passaram ao longo do tempo.
Em alguns casos, os significados dos termos mudaram, relata Maroneze. “Placenta”, por exemplo, em latim se referia a uma comida (uma fogaça, bolo ou pão cozido). De acordo com o etimólogo, o vocábulo passou a significar o órgão relacionado à gravidez depois que o professor de anatomia e cirurgião italiano Realdo Colombo o comparou a uma fogaça, ainda no século XVI, por achá-lo parecido com a comida. “A natureza gera um certo fluxo, que é feito à semelhança de uma fogaça circular”, afirmou Colombo em texto publicado postumamente em 1559, meses depois da sua morte.
“Não sei que referência de fogaça ele tinha para achar essa semelhança. O que chamamos de fogaça hoje não é muito parecido”, observa o etimólogo.
A ideia do dicionário também é apresentar ao leitor questões controversas. Neste sentido, a datação é importante. Alguns anos depois da morte de Realdo Colombo, em 1562, Gabriele Falloppio escreveu em um texto “…o órgão que eu chamo de ‘placenta’”, aparentemente tentando chamar para si a ideia de que foi ele o primeiro a nominar o órgão materno-fetal. Colombo e Falloppio (o primeiro a descrever as tubas uterinas, por isso inicialmente chamadas de “trompas de Falópio”) eram rivais e houve acusações de plágio.
“Talvez o Falloppio realmente tenha sido o primeiro a nominar a placenta, mas não dá para saber exatamente. O fato é que Colombo publicou antes e leva os créditos”, conta Maroneze.
Outra controvérsia estudada pelo pesquisador se refere ao termo “gema”. O vocábulo tem três sentidos: o primeiro se refere à porção interna do ovo; o segundo é a acepção da Botânica relativa ao broto de uma estrutura vegetal, também chamada de pimpolho; e o terceiro é o significado de “pedra preciosa”.
A “gema” como “pedra preciosa” e como “broto” já era atestada no latim clássico. Então o pesquisador quis saber o que motivou chamar a porção interna do ovo como gema. A resposta está na consulta ao termo no novo dicionário, que informa que, “…ao contrário do que parece sugerir o dicionário Houaiss, a acepção da Botânica não deriva da acepção latina de ‘pedra preciosa’; pelo contrário, é a acepção de ‘pedra preciosa’ que provavelmente se derivou da de ‘broto da videira’ (…) a acepção de ‘gema do ovo’ pode ter surgido pelo fato de tanto a gema do ovo quanto a da planta terem a função de gerar um novo ser vivo”.
Aparentemente não há consenso entre os que opinam entre um sentido e outro. “Mas na minha concepção é mais fácil entender que da gema é que brota a vida, assim como no vegetal, daí a referência à parte interna do ovo”, explica o etimólogo.
“Pétala” é outro vocábulo que intrigou Maroneze. O masculino “petalum” apareceu em 1788 na obra de Vandelli, e o pesquisador descobriu textos científicos de até 1980 usando “pétalo”. Ele percebeu que essa oscilação acontece em italiano, francês e no português. “Talvez a forma do italiano tenha influenciado no uso da palavra no masculino por Vandelli”, acrescenta.
A primeira ocorrência que encontrou de “pétala” foi no Dicionário da Real Academia de Ciências de Lisboa, de 1793. Segundo o etimólogo, provavelmente o uso generalizado da forma no feminino levou tempos, e acabou por suplantar a forma masculina, como ocorreu na língua portuguesa.
Para o trabalho dos pesquisadores a tecnologia é fundamental, dado o acesso que se tem hoje a manuscritos e a fotografias de obras de outros tempos.
“Se eu fosse fazer esse dicionário há 60 anos, eu teria de viajar pessoalmente a uma biblioteca de Portugal para microfilmar, transcrever etc. Hoje faço esse trabalho do meu computador de casa”, finaliza o etimólogo.
Clique aqui para acessar o dicionário
Sobre o projeto:
O Projeto A elaboração de um dicionário histórico de termos da Biologia foi contemplado na Chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq.
Coordenador: Bruno Oliveira Maroneze (UFGD)
Parceria/Apoio: Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (NEHiLP/USP)