Um olhar sobre a polarização

Pesquisadores irão avaliar os efeitos do aumento da divergência ideológica e da dinâmica de afeto-desafeto sobre a população brasileira, em estudo envolvendo eleitores de todo o país.

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Por Washington Castilhos

Em meio à tragédia climática que assola o Rio Grande do Sul, uma ampla circulação de conteúdos desinformativos atrapalhou a assistência às vítimas e o trabalho de agentes governamentais, voluntários e profissionais da imprensa. Segundo levantamento  do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NetLab/UFRJ), influenciadores digitais e políticos de extrema direita foram os que mais espalharam a desinformação, por meio de narrativas envolvendo ataques à atuação do governo federal e negacionismo climático. O cenário incluiu ainda atitudes hostis contra jornalistas que cobriam as enchentes, acusados de terem apoiado o candidato menos favorito da população local nas polarizadas eleições presidenciais de 2022.

“A demonização dos adversários reforça tendências de polarização”, afirma o cientista político André Borges, da Universidade de Brasília (UnB), coordenador de um projeto  de pesquisa que analisa as causas e consequências da polarização na América Latina, com maior foco no Brasil. Segundo ele, um dos efeitos do fenômeno é a disseminação da desinformação – tal como observada na tragédia do sul.

Borges e sua equipe estão entrevistando 2.500 pessoas de todas as regiões do país desde fins de maio por meio de questionários. O objetivo é avaliar os efeitos da polarização política sobre a população brasileira, e como ela pode afetar a convivência democrática.

Os questionários incluem questões de um survey aplicado em mais de 20 países da América Latina pelo Lapop (sigla para Latin American Public Opinion Project), instituto ligado à Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, especializado em pesquisas de opinião.

“Nosso ponto de partida é que as causas da polarização são similares entre os países da região”, diz o pesquisador. O acirramento das disputas políticas teve início na última década com a ascensão de líderes populistas de direita em diversos países latino-americanos, como Argentina, Chile, Uruguai e Brasil. As novas forças de direita, segundo Borges, beneficiaram-se de um desgaste de governos de esquerda iniciados após a virada do século – a chamada “onda rosa”. E ganharam corações e mentes por meio da construção de narrativas que reforçaram crenças que as pessoas já tinham.

“O surgimento dessas lideranças coincide com um aumento da polarização na região”, diz o cientista político. “Queremos verificar até que ponto há um efeito das próprias lideranças políticas populistas nesse acirramento”.

O questionário traz uma série de perguntas elaboradas para medir, entre outras coisas, os efeitos dos valores populistas dessas lideranças nos eleitores.

“Há populismo de direita e de esquerda. Os populistas de direita exploram o sentimento da população contra a política tradicional, glorificando pessoas de fora da política, como os empresários. O presidente eleito na Argentina, Javier Milei, é um exemplo”, explica André Borges, um dos organizadores da coletânea Para entender a nova direita brasileira: polarização, populismo e antipetismo, publicada em 2023.

O pesquisador, que há anos estuda o fenômeno, afirma que uma das estratégias dos populistas é fazer uma distinção entre povo e elite. “Os de direita vão construir a imagem de uma elite de esquerda que, segundo eles, controla a imprensa e a universidade e defende valores morais que não são do povo. A partir daí, passam a demonizar os adversários, criando uma situação de ‘nós contra eles’”, diz.

Por meio dos questionários, os cientistas irão mensurar as percepções e pontos de vista dos entrevistados de forma escalonada, variando do “discordo totalmente” ao “concordo totalmente”. A ideia é ver o quanto os entrevistados discordam ou concordam com afirmações como “A maioria dos políticos não se importa com o cidadão comum – Os políticos não são confiáveis” ou “É melhor ser representado por um cidadão comum, sem experiência política prévia, do que por um político tradicional”.

Time de futebol

A ideia é também analisar os efeitos das dimensões afetiva e ideológica da polarização para a convivência democrática entre as pessoas. A primeira, segundo o cientista político, tem a ver com sentimentos de afeto e desafeto, “e acontece quando há grupos políticos que desenvolvem uma lógica de ‘nós contra eles’, como um time de futebol”, compara o pesquisador.

“Ela contamina outras esferas da vida em sociedade, como casamentos, sociedades profissionais, relações de amizade etc. A política adquire uma lógica do tudo ou nada, o que pode descambar para a deslegitimação da democracia. É algo como ‘eu aceito a democracia só se meu time ganhar’”, acrescenta.

A dimensão ideológica se refere ao aumento da distância nas posições políticas dos eleitores. “Não só aumentou a animosidade, mas cresceu também a distância ideológica”, explica o coordenador do estudo.

"É como no futebol", diz o cientista político André Borges (Foto: andreborges.org)

Neste sentido, a pesquisa investiga se as pessoas estariam dispostas a participar de atividades com pessoas de posições políticas diferentes, ou a ter uma amizade ou outro tipo de relação com alguém que apoie e vote em um candidato diferente do seu.

Os autores do estudo pretendem também explorar em que medida as atitudes populistas estão relacionadas à suscetibilidade das pessoas de acreditarem em informações falsas e em teorias conspiratórias – segundo eles, a disseminação da desinformação e de teorias da conspiração é um traço da polarização.

“Isso provoca um efeito nocivo para a convivência democrática”, afirma o pesquisador. “É importante olhar para o aumento da polarização na região – e particularmente no Brasil – em razão dos seus impactos sobre o funcionamento da democracia”, finaliza.

Sobre o projeto:

O projeto  “Causas e consequências da polarização política na América Latina” foi contemplado na chamada n° 40/2022 do Edital Pró-Humanidades do CNPq.

Coordenador: André Borges de Carvalho (UnB)

Imagem capa: Freepik