Por Washington Castilhos
Em junho, a Coordenadoria Regional de Educação de Florianópolis afastou a professora de filosofia Carolina Puerto de suas funções, sob a acusação de “militância política”. O motivo: um mês antes, em uma de suas aulas para uma turma do ensino médio, a docente levou a questão sobre as enchentes no Rio Grande do Sul para os alunos pensarem, e citou o discurso do governador catarinense, Jorginho Mello (PL), como exemplo de propagação de fake news em um contexto de negacionismo ambiental. Na época, em meio à tragédia climática, Mello havia divulgado um vídeo em que afirmava que caminhões com ajuda humanitária vindos de seu estado haviam sido barrados em postos de fiscalização das estradas, informação desmentida pela Agência Nacional de Transportes Terrestres. Além dele, outros representantes do seu espectro político também tentaram descredibilizar as ações dos órgãos federais durante as enchentes por meio de informações falsas e teorias da conspiração, um dos modos em que os negacionistas climáticos operam.
A professora já está de volta às atividades, mas responde a uma sindicância, segundo o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Santa Catarina. O caso acende um alerta, e a ameaça de censura e punição é particularmente preocupante para professores que propõem debates relacionados à questão do negacionismo científico, uma vez que estes profissionais não estão suficientemente amparados pelos documentos oficiais para tratar do tema em sala de aula.
“A abordagem sobre o negacionismo na escola está condicionada ao uso obrigatório de documentos curriculares, mas eles não dão respaldo aos professores. De modo geral, as referências ao negacionismo científico nos documentos oficiais são praticamente inexistentes. Diante disso, alguns se calam, outros não”, afirma a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) Sandra Escovedo Selles.
A educadora ressalta que a omissão é grave para a educação brasileira. “Ao silenciar e não enfrentar a questão, acaba-se operando contra a compreensão da ciência e a favor do negacionismo”, diz.
Selles é uma das coordenadoras de uma pesquisa que busca compreender o papel das políticas curriculares brasileiras no enfrentamento do negacionismo científico nas escolas. A ideia é refletir sobre como os documentos oficiais da educação tratam o tema e seus assuntos correlatos, como fake news e pós-verdade.
O projeto envolve três universidades — além da UFF, as federais do Rio Grande do Sul (UFRGS) e de Santa Catarina (UFSC) — e se divide em várias frentes: além das análises da Base Nacional Comum Curricular e da Base Nacional Comum para a Formação de Professores, dos documentos secundários de 12 cidades localizadas em oito estados, e dos livros didáticos e documentos curriculares, o grupo de 60 pesquisadores — incluindo professores universitários e de escolas públicas — desenvolve atividades de intervenção e entrevistas, focando nas variadas expressões do negacionismo científico, como o chamado terraplanismo (a crença de que a Terra é plana) e a negação da eficácia das vacinas.
“As referências às vacinas, por exemplo, não aparecem”, relata Selles. “A questão ambiental aparece, mas muitas vezes joga-se o tema para disciplinas eletivas”. A resolução 5084/24 da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais, por exemplo, traz uma matriz curricular que prevê a disciplina “Emergência climática global” para o ano letivo de 2025 nas escolas de ensino médio estaduais mineiras. Mas, na opinião da pesquisadora, isso não garante que o tema do negacionismo será efetivamente apresentado e discutido.
Os pesquisadores pretendem analisar as diretrizes oficiais de oito estados — Bahia, Ceará, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Na análise do currículo de biologia do estado de Minas Gerais, já publicada, eles concluíram que as narrativas relacionadas ao negacionismo priorizam o desenvolvimento de competências e habilidades técnicas de fact-checking por parte dos alunos, em detrimento de uma compreensão aprofundada do conhecimento, constringindo assim quaisquer possibilidades de estímulo a visões críticas sobre o assunto.
Além das publicações, os pesquisadores estão desenvolvendo trabalhos de intervenção em escolas públicas. Um professor de física integrante do projeto em Santa Catarina pediu aos alunos que entrevistassem pessoas sobre terraplanismo. Outro na cidade do Rio de Janeiro trabalhou o tema “vacinação e negacionismo” no contexto da Covid-19 com alunos de uma escola municipal. A ideia era saber quantos estudantes se vacinaram, se tiveram a doença e conhecer suas percepções sobre a vacinação.
Em uma escola estadual de ensino fundamental e médio de Niterói, no Rio de Janeiro, o professor de artes Rodrigo Machado tem trabalhado com seus alunos sobre o negacionismo racial, que se refere à negação da existência do racismo e à relativização dos efeitos deletérios da escravidão no Brasil. Os estudantes já produziram desenhos e vídeos, e participaram de debates sobre educação antirracista, após assitirem ao documentário Menino 23 — Infâncias perdidas no Brasil (2016).
“Percebo esse tipo de negacionismo nos alunos. Eles negam o próprio racismo. Há um desconhecimento de temas como pertencimento, representatividade, cultura africana, povos originários”, diz Machado. “Nenhum aluno sabia que o Brasil foi um dos países que mais escravizou pessoas no mundo e o último a libertar as pessoas escravizadas”.
O educador faz críticas em relação ao material didático adotado para alunos do sexto ano. “O livro texto não me serviu para nada, por ser desatualizado e ter uma narrativa prescritiva, por isso resolvemos não adotá-lo. Em vez disso, nos apoiamos na literatura infantil, que está mais atualizada sobre a temática antirracista, e a adotamos como material extra-classe”, conta.
De acordo com Sandra Selles, não há uma resposta direta ao negacionismo. “O caminho é valorizar o conhecimento criticamente, e não porque ele vem de uma autoridade. Buscamos uma resposta para o negacionismo em uma racionalidade, e essa nossa aposta exclusiva na racionalidade é frustrante. Melhor seria apostar na criticidade, isto é, na formação de alunos como leitores críticos do mundo”, observa.
O fenômeno não pode ser analisado isoladamente. É preciso levar em conta a história de vida das pessoas, seus pertencimentos e idiossincrasias. “Pensar nos médicos anti-vacinas, ou na parcela da população da Alemanha que apoiou o nazismo pode parecer uma contradição, mas não é. É um erro achar que o fato de serem mais educados os faria se desviar desses caminhos”, complementa.
Foi para se referir aos grupos que negam o genocídio do povo judeu pela Alemanha nazista que o historiador francês Henry Rousso cunhou o termo negacionismo, no final da década de 1980, no sentido de negação do saber historiográfico. De lá para cá, a expressão tem servido para se referir a qualquer discurso que busque negar um fato cientificamente comprovado.
Para o historiador Pedro Zarotti, que não participa do projeto, a pesquisa coordenada por Selles é importante pois acende um sinal de alerta para a sociedade. “O negacionismo na escola é um fato, e o silenciamento em torno do tema alimentado pela própria legislação é perigoso, uma vez que dá uma envergadura maior para movimentos como o Escola sem Partido acontecerem, e fortalece todas as formas de negacionismo”, diz ele.