Os efeitos da política de cotas dentro e fora das universidades

Rede de pesquisadores analisa transformações acadêmicas e sociais provocadas direta e indiretamente pela introdução de ação afirmativa no ensino superior

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Por Rodrigo de Oliveira Andrade

A adoção de ações afirmativas pelas universidades brasileiras ampliou o acesso de indivíduos de baixa renda, pretos, pardos e indígenas ao ensino superior. Mas se engana quem pensa que os impactos dessa política se restringem ao ambiente acadêmico. Nos últimos anos, estudos feitos por pesquisadores de diferentes áreas têm indicado que os efeitos dessa medida reverberam para além das universidades.

A política de cotas é uma das que mais se destacam nesse sentido. “Ela fez com que populações outrora excluídas do ensino superior se tornassem sujeitos de pesquisas e passassem a produzir conhecimento estratégico para o país”, destaca o sociólogo Paulo Sergio da Costa Neves, do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Paulo.

Neves coordena uma ampla rede de pesquisadores de diferentes áreas e instituições de ensino e pesquisa do país envolvidos em estudos sobre as transformações sociais provocadas direta e indiretamente pela introdução de ações afirmativas no ensino superior.

Os resultados iniciais dos estudos feitos pelo grupo indicam que as mudanças promovidas pelas cotas se manifestam de diferentes formas dentro e fora das universidades. “Um exemplo é o movimento ascendente de busca por diversificação no currículo dos cursos e escopo das pesquisas”, comenta Neves.

Ele cita o caso das ciências humanas e sociais, cuja bibliografia historicamente é predominantemente baseada em autores brancos europeus e norte-americanos. “A entrada de alunos com perfil diversificado no ensino superior tem mobilizado a incorporação de referenciais teóricos baseados em outras experiências sócio-históricas, envolvendo nomes nacionais e estrangeiros não necessariamente vinculados à academia.”

Da mesma forma, a expansão da diversidade nas instituições de ensino superior contribuiu para ampliar as perspectivas de pesquisa sobre a realidade brasileira. “Estudantes e cientistas beneficiados pelas cotas tendem a ter agendas voltadas a aspectos específicos de sua realidade de vida e a desenvolvê-las dentro de uma perspectiva decolonial”, comenta Neves, referindo-se a estudos que buscam revisar o processo de construção histórica da modernidade, evidenciando seus efeitos nos países e nas populações que foram colonizadas.

Esse movimento tem ecoado para fora das universidades sob a forma de coletivos, criados inicialmente dentro do ambiente acadêmico para recepcionar estudantes cotistas, fiscalizar e acompanhar a aplicação das políticas de ações afirmativas nas universidades e discutir estratégias para ampliá-las e aprofundá-las, de modo a promover o acesso e garantir a permanência desses estudantes nos cursos.

Pesquisas recentes feitas pelo grupo de Neves têm verificado que cotistas e ex-cotistas estão levando esses movimentos — e as discussões promovidas dentro deles — para as periferias das grandes cidades. Estamos mapeando esses coletivos para caracterizar suas relações com o ambiente acadêmico e entender como eles podem aproximar a universidade das comunidades pobres e periféricas”, afirma o sociólogo. “Nossa hipótese é a de que as transformações no espaço público sobre assuntos como racismo, igualdade de gênero, entre outros temas, foram motivadas, em grande medida, pelas ações afirmativas.”

Também como reflexo da adoção dessa política, mais estudantes de escolas públicas passaram a tentar uma vaga no ensino superior. Promulgada em 2012, a lei de cotas estabeleceu que 50% das matrículas de institutos e universidades federais deveriam ser destinadas a estudantes de escolas públicas. Antes disso, muitos alunos sequer tentavam o vestibular — resultado de um fenômeno conhecido como “autoexclusão”, processo de baixa autoestima que faz com que esses alunos desistam do curso superior antes mesmo de tentar o vestibular. “As entrevistas que fizemos com indivíduos de baixa renda, pretos, pardos e indígenas que conseguiram uma vaga na universidade indicam que muitos só prestaram o vestibular porque sabiam que poderiam se beneficiar do sistema de cotas. Do contrário, não teriam tentado por julgarem que não tinham condições de serem aprovados.”

Esses e outros resultados das pesquisas do grupo deverão alimentar um site, atualmente em desenvolvimento pela equipe de Neves. “Estamos montando uma base de dados comum, que deverá ser divulgada em um site na forma de livros, artigos, vídeos e podcasts.” A ideia, segundo ele, é que as informações contribuam para aprimorar a compreensão do público sobre as ações afirmativas, “de modo que elas passem a ser vistas não apenas como uma política pública voltada às universidades, mas como uma medida com reverberações mais amplas e benefícios para toda a sociedade”.

 

Sobre o projeto

O projeto Caleidoscópio das ações afirmativas: avaliações, experiências e alcances das políticas de cotas nas universidades públicas foi contemplado na chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq.

Coordenador: Paulo Sergio da Costa Neves (UFABC)