Mercado alimentar digital cresce no Brasil

Grupo de pesquisadores mapeia e acompanha iniciativas de venda de produtos da agricultura familiar no país

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Por Déborah Araujo

Como são seus hábitos de consumo de alimentos? Você vai em feiras livres com frequência? Prefere comprar online ou presencialmente? Essas são questões cada vez mais consideradas na indústria de alimentos, inclusive na produção agrícola familiar. Ao longo da pandemia de covid-19, houve um crescimento expansivo de compras pela internet, e os produtores e vendedores de feiras livres tiveram que se adaptar a essa tendência. Buscando compreender esse fenômeno, desde 2020, um grupo de pesquisadores vem acompanhando o desenvolvimento do mercado alimentar digital no Brasil, com o objetivo de analisar os processos de construção social desse canal de comercialização da agricultura familiar para as vendas de alimentos e produtos, e captar a sua diversidade.

“A pandemia escancarou a digitalização de diversos setores, inclusive o alimentar. Então fizemos reunião com alguns grupos que já estavam com essas iniciativas. Quando vimos, já tínhamos mais de uma dezena de plataformas listadas, o que nos possibilitava empreender uma análise”, conta o professor Marcio Gazolla, coordenador do projeto e do Grupo de estudos e pesquisas em Desenvolvimento, Alimentação, Mercados e Políticas Públicas (GePPADeM), do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Foram encontrados 38 mercados agrícolas familiares digitais, 14 no Nordeste, 12 no Sul, 7 no Centro-Oeste e 5 no Sudeste do país.

Para ser classificada como um mercado alimentar digital, a iniciativa precisa ser, antes de tudo, focada na venda de produtos da agricultura familiar. A comercialização pode ser feita por diferentes canais online: WhatsApp, aplicativo, marketing e venda via redes sociais “ou até por canais mais rebuscados, como uma plataforma criada por uma instituição, um órgão público ou uma cooperativa”, explica o pesquisador.

Créditos: Potira Preiss e Juliane Duarte (PGDR/UFRGS)

O segredo está no cooperativismo

A maioria dos mercados alimentares digitais encontrados pelos pesquisadores são organizados por cooperativas ou centrais de cooperativas. “Quase 72% dos agricultores familiares no Brasil não têm acesso à internet”, destaca Gazolla. A falta de estrutura para conexão, inclusive, é uma das preocupações do pesquisador. “Hoje existem aplicativos para tudo: previsão do tempo, planejamento da produção, gestão do rebanho, bancos online para pagar as contas. Mas a maioria dos pequenos agricultores não usa porque não tem acesso.”

Fornecer estudos para a promoção de políticas públicas para acesso ao digital no campo é um dos principais objetivos da pesquisa. Mas já existem alguns projetos públicos para dar suporte aos agricultores. Um exemplo é o Sistema de Informação Digital da Agricultura Familiar no Nordeste (SIRAF-NE), desenvolvido pela parceria entre a Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN) e o governo estadual potiguar, a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e instituições da iniciativa privada. 

Hoje, o SIRAF-NE funciona nos nove estados da região Nordeste para divulgar e dar vazão às vendas dos agricultores familiares. “A plataforma é pública, mas é colaborativa entre os cooperados”, acrescenta o pesquisador.

Há também iniciativas agrícolas que se aliam a produtores artesanais para vender coletivamente. No Rio de Janeiro, o exemplo mais conhecido é o coletivo Junta Local, que antes da pandemia já realizava feiras mensais e expandiu suas vendas de cestas online. Já no Rio Grande do Sul, há a iniciativa Tri Ecológico, que atende, especialmente, os consumidores de Porto Alegre e municípios da região metropolitana.

“A Tri Ecológico é uma iniciativa de mulheres que produzem alimentos orgânicos e agroecológicos”, explicam as pesquisadoras Potira Preiss e Juliana Duarte (PGDR/UFRGS), membros do GePPADeM. “Além disso, elas buscam produtos alimentares da região, a partir dos seus parceiros, de assentamentos e outros produtores ecológicos, para complementar a cesta alimentar, que são entregues na porta dos consumidores.” A cesta inclui frutas, verduras, legumes, sucos e até camponata de cogumelos.

Produtos da estação

Como várias das iniciativas mapeadas, o Tri Ecológico é uma experiência de comercialização local e agroecológica com cadeias curtas de abastecimento. Isso demonstra uma preocupação dos mercados alimentares digitais com a diminuição dos impactos ao meio ambiente, como a baixa emissão de gás carbônico por conta de trajetos de transporte mais curtos.

Outra característica sustentável desses mercados é o foco na venda de produtos sazonais. “Como são mercados que conectam diretamente o produtor com o consumidor, ele já sabe os alimentos da estação e o agricultor sabe o que o cliente quer”, declara Gazolla. “O combate ao desperdício não é um dos pontos da pesquisa, mas é importante. Eu imagino, como hipótese, que por conta da cadeia de alimentos mais curta, o desperdício seja menor”, acrescenta.

A pesquisadora Cristiane Tavares Feijó (UTFPR), também membro do GePPADeM, afirma haver uma responsabilidade tanto dos consumidores quanto dos agricultores em relação ao desperdício. Ela conta que participou  de uma célula de consumidores em Florianópolis (SC), onde os alimentos que não foram vendidos eram doados para comunidades de baixa renda. “Participei, inclusive, da entrega de produtos agrícolas a uma comunidade quilombola urbana”, recorda.

E-commerce

Os pesquisadores dos mercados alimentares digitais não estão preocupados com a possível sobreposição do digital. “Os chamados mercados físicos vão continuar existindo e o digital complementa isso, e ambos vão conviver”, declara Gazolla. “Porque existe o consumidor que quer escolher os vegetais, as frutas pela cor, pela aparência, mas também há aquele que, nessa vida tão corrida, não consegue ir à feira. Ele escolhe online, a qualquer hora, os produtos que quer, as marcas, o horário de entrega, então é muito cômodo. Mesmo com as taxas de entrega, compensa para ele, é justo.”

Ainda há, contudo, uma preocupação com a dificuldade dos produtores em não só ter acesso ao digital, mas na comunicação e marketing. “Há algumas reclamações de consumidores sobre os alimentos, por exemplo, que ainda geram um ruído na comunicação dos agricultores”, explica Cristiane Tavares Feijó.

Créditos: Potira Preiss e Juliane Duarte (PGDR/UFRGS)

A necessidade de treinamento nas ferramentas digitais, na comunicação e no planejamento é um dos próximos pontos a serem estudados na pesquisa. Inclusive, observa-se a iniciativa feminina à frente dessas áreas. “Nós temos notado que as mulheres estão tomando a frente no marketing da agricultura familiar, seja a esposa ou as filhas dos produtores”, destaca Marcio Gazolla. “É um achado importante que vai ser abordado mais para frente.”

Sobre o projeto:

O projeto Mercados alimentares digitais no Brasil: dinâmicas, inovações e desafios da comercialização na agricultura familiar foi contemplado na Chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq.

Coordenador: Marcio Gazolla

Parceria/Apoio: Grupo de estudos e pesquisas em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento (GEPAD) Grupo de estudos e pesquisas em Desenvolvimento, Alimentação, Mercados e Políticas Públicas (GePPADeM)