A primeira vez que se ouviu falar em “ideologia de gênero” no Brasil foi em julho de 2003. Quem usou a expressão foi o deputado federal Elimar Damasceno, do Partido de Reedificação da Ordem Nacional (Prona), em reação a pautas progressistas que haviam sensibilizado parte da sociedade para o fato de “gênero” designar o papel desempenhado por um dos sexos, não importando se nasceu homem ou mulher.
O termo circulou bastante desde então, ganhando força a partir de 2014, com debates sobre o novo Plano Nacional de Educação. “À época, núcleos religiosos conservadores fizeram campanhas de ataques contra propostas de currículo escolar que incluíssem temas como igualdade de gênero e diversidade sexual”, explica Corrêa.
Anos antes, em 2011, setores conservadores da sociedade e do Congresso já haviam feito campanha contra o projeto Escola sem Homofobia, o qual previa a distribuição em todas as escolas do país de um material de formação sobre questões de gênero e sexualidade. Segundo as acusações, o material — pejorativamente alcunhado de “kit gay” —, seria responsável por “estimular o homossexualismo e a promiscuidade”. O governo à época cedeu à pressão e suspendeu o projeto.
Por sua vez, a expressão “cidadão de bem” costumava aparecer em conversas informais entre amigos e familiares, e em noticiários sensacionalistas. Nos últimos anos, no entanto, passou a ser amplamente usada em campanhas eleitorais, ganhando centralidade e novos contornos. Antes utilizada para designar “não criminosos”, a expressão passou a nomear também condutas políticas. “A separação entre ‘cidadão de bem’ e ‘bandidos’ seria usada para opor ‘direita’ e ‘esquerda’, com o objetivo de criminalizar o campo progressista e as pautas inclusivas”, afirma Corrêa.
Tanto a primeira quanto a segunda edição do dicionário foram desenvolvidas de forma colaborativa com pesquisadores de várias instituições. Cada um ficou responsável pela explicação de um ou mais verbetes. O linguista Rodrigo Borba, professor associado da UFRJ e responsável pelos verbetes sobre “ideologia de gênero” e “linguagem neutra”, explica que a estratégia da direita tende a ser a de se apropriar de palavras, conferindo-lhes novos sentidos para que circulem mais facilmente.
Ele acrescenta que o léxico conservador é esquemático e costuma ser reproduzido com pouco questionamento pela imprensa. “Ele é mal compreendido até mesmo pelos políticos que dele fazem uso”, destaca. “É como se esses bordões sempre tivessem existido, ninguém se pergunta de onde vieram, quando e como foram criados e a que se referem.” O linguista lembra ainda que as palavras escolhidas pela direita também costumam ser consagradas, já sedimentadas na linguagem e dotadas de certa autoridade social.
Os pesquisadores esperam incluir outros verbetes em novas atualizações do dicionário. A expectativa é que o material circule não apenas nas escolas ou entre movimentos da sociedade civil e políticos, mas também nas famílias. “Essas palavras aparecem nas conversas na mesa do jantar e as pessoas brigam muito por causa delas”, afirma Borba. “Este é um bom material para educação política de todos e todas.”