Conservadorismo acentua disparidade de gênero no trabalho doméstico

Pesquisadores investigam como a pandemia e a emergência de pautas conservadoras impactaram as atitudes de homens e mulheres em relação aos cuidados da casa, dos filhos e de familiares idosos no Brasil.

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Por Rodrigo de Oliveira Andrade

As mulheres ainda concentram uma carga de trabalho doméstico e de cuidados não remunerados maior do que a dos homens no Brasil. O simples fato de ser mulher resulta em um acréscimo de 11 horas semanais no trabalho doméstico não remunerado, de acordo com estudo publicado em fins de 2023 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Agora, um grupo de pesquisadores de diferentes instituições do país quer entender se e como as atitudes de homens e mulheres em relação a papéis de gênero, arranjos familiares e realização de trabalhos domésticos e de cuidados foram afetados pela pandemia e emergência de pautas conservadoras.

A crise sanitária desencadeada pela Covid-19 gerou não apenas uma crise econômica, mas também de cuidado, impactando diretamente as mulheres. Pesquisas feitas entre 2020 e 2021 indicam que elas sofreram mais com o desemprego e aumento das horas dedicadas aos cuidados da casa, dos filhos ou de familiares idosos. Ao mesmo tempo, nos últimos anos, vários países — entre eles o Brasil — experimentaram a emergência de governos conservadores articulados a pautas morais relacionadas a gênero e família, e também à exaltação do padrão homem-esposo-provedor e mulher-esposa-mãe-cuidadora.

Para entender como a emergência desses valores afetou as dinâmicas e escolhas de indivíduos e famílias no que se refere à realização de tarefas domésticas e ao provimento de cuidados, os pesquisadores pretendem entrevistar 1.575 homens e mulheres de diferentes níveis sociais das cidades de Natal (RN), João Pessoa (PB), Santa Maria (RS) e Rio de Janeiro (RJ).

As entrevistas terão como base um questionário que está sendo aplicado na 5a rodada do módulo “Família e Mudanças nos Papéis de Gênero”, do International Social Survey Programme, programa de colaboração internacional que realiza pesquisas anuais sobre diversos tópicos relevantes para as ciências sociais. O objetivo é identificar e descrever qualitativamente a distribuição das tarefas domésticas e de cuidados nas famílias, os serviços de apoio disponíveis ou a externalização desses trabalhos — por meio da contratação de domésticas e diaristas, escolas, creches, casas geriátricas, programas assistência etc. —, e as estratégias cotidianas dos indivíduos nas relações intrínsecas entre esses elementos.

Para complementar a aplicação do questionário, os pesquisadores também estão realizando “observações participantes” em escolas, creches, postos de saúde, entre outros serviços públicos e privados que contribuem para a redução do trabalho doméstico, ajudando a promover um maior equilíbrio entre as demandas com o trabalho remunerado, por exemplo. “É difícil conseguir acessar a intimidade de famílias dentro de suas casas por meio de entrevistas, de modo que o projeto também prevê a realização de observações etnográficas complementares em espaços que costumam auxiliar no trabalho doméstico e de cuidado”,  explica a cientista social Felícia Picanço, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do projeto.

A Woman Ironing. Edgar Degas, 1873

Segundo ela, é sabido que o nível de escolaridade e o ingresso no mercado de trabalho em posições de maior prestígio são fatores que contribuem para atenuar as desigualdades de gênero na distribuição do trabalho doméstico e de cuidados nas famílias. “Queremos agora ir além dessas constatações e mensurar outros fatores envolvidos nesse fenômeno”, ela diz. Um dos pilares desse desequilíbrio são os valores morais e papéis de gênero. “Queremos entender se e como os valores tradicionais de família e gênero afetaram as dinâmicas e escolhas individuais e familiares para a realização das tarefas domésticas e provimento de cuidados”, destaca Picanço. A ideia é usar esses dados para comparar o Brasil com outros países. 

A pesquisa pretende produzir novas evidências científicas que possam subsidiar políticas públicas e capacitar a opinião pública para melhor compreender as desigualdades de gênero, raça e classe em relação à distribuição das tarefas domésticas e inserção no mercado de trabalho.

Sobre o projeto: 

O projeto “Famílias, trabalho doméstico e cuidado em perspectiva comparada e realidades singulares” foi contemplado na Chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq. 

Coordenadora: Felícia Silva Picanço (UFRJ)