Por uma maternidade mais humanizada

Pesquisadoras do Brasil e exterior articulam-se em projeto para conscientizar profissionais de saúde sobre casos de violência obstétrica

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Por Rodrigo de Oliveira Andrade

Em maio de 2019, a Ordem dos Advogados do Brasil de Alagoas realizou em sua sede, em Maceió, uma audiência pública sobre violência obstétrica, termo usado para caracterizar abusos praticados contra mulheres antes, durante e após o parto, como agressões física e verbal, uso excessivo de medicamentos, intervenções não autorizadas pela gestante ou realização de práticas desagradáveis e dolorosas, como a manobra de Kristeller, que consiste em pressionar a parte superior do útero para acelerar a saída do bebê. Na ocasião, as autoridades que compunham a mesa de abertura e representantes do Conselho Regional de Medicina (CRM) — a maioria homens — reforçaram seu posicionamento contra o uso do termo, seguindo recomendação do Ministério da Saúde, que, semanas antes, publicara um despacho orientando que a expressão não fosse usada de maneira indiscriminada.

“Obviamente, os representantes do CRM que participavam da mesa de abertura não ficaram até o final da audiência pública para ouvir as denúncias trazidas pela sociedade civil”, relembra a cientista social Débora Allebrandt, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), que acompanhava a reunião em 29 de maio. “Naquele mesmo dia, descobri que até então não havia nenhuma denúncia de violência obstétrica registrada no CRM de Alagoas, dado estranho, uma vez que pesquisas indicam que uma a cada quatro mães no Brasil afirma ter sofrido algum tipo violência.”

Desde então, a pesquisadora, ao lado de outras colegas, debruça-se sobre o assunto, realizando entrevistas com profissionais de saúde que atuam na linha de frente do atendimento materno-infantil de Alagoas para identificar lacunas e problemas nos atendimentos de mulheres grávidas. A ideia agora é usar as informações coletadas para desenvolver materiais de educação permanente que possam ser usados em cursos de capacitação e atualização desses profissionais, dialogando com evidências científicas, diretrizes e relatos de mulheres sobre suas experiências de atendimento durante o parto.

“A interlocução entre profissionais de saúde e vítimas de violência obstétrica é importante para que eles entrem em contato com a realidade dessas mulheres”, destaca a antropóloga Lucia Eilbaum, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, uma das coordenadoras da pesquisa. Segundo ela, essas entrevistas também servirão de base para a produção de podcasts com o objetivo de jogar luz sobre o tema, atualmente silenciado e marginalizado.

A iniciativa faz parte de um projeto maior, que pretende reunir experiências de mulheres que tiveram a guarda de seus filhos retirada pelo Estado de forma arbitrária em função de avaliações morais sobre seus modos de vida e capacidade de cuidado — caso de mães quilombolas, indígenas, praticantes de religiões afro-brasileiras e em situação de rua. Em outra frente, as pesquisadores se debruçarão sobre a realidade de mulheres cujas experiências de maternidade e cuidado foram interrompidas pela violência do Estado, em especial das forças de segurança, ou por situações de encarceramento.

Dados esparsos e frágeis

A violência obstétrica é um problema antigo no Brasil. Em 2012, um levantamento da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com 23,8 mil mulheres que deram à luz em 191 municípios indicou que 30% daquelas atendidas em hospitais privados sofreram algum tipo de violência obstétrica — no Sistema Único de Saúde (SUS), esse número foi de 45%. Mulheres negras estão entre as mais vulneráveis. “Existe a falsa noção de que elas são mais resistentes à dor, o que faz com que suas reclamações sejam ignoradas e elas sejam expostas a situações que se configuram como violência obstétrica”, afirma Allebrandt.

Segundo a pesquisadora, em casos em que foi realizada a episiotomia — corte abaixo da vagina para facilitar o nascimento do bebê em partos normais —, as mulheres negras receberam menos anestesia local quando comparadas a mulheres brancas. “Essa realidade, cotidiana e cruel, revela uma violação dos direitos das mulheres grávidas, com a perda da autonomia e decisão sobre seus corpos”, afirma Allebrandt.

Os dados sobre violência obstétrica são esparsos e frágeis. A dificuldade para se descrever a magnitude do fenômeno se dá porque muitas mulheres sequer sabem que foram vítimas de violência obstétrica. Traumatizadas, muitas hesitam ou demoram para denunciar. As que resolvem buscar justiça quase sempre esbarram em obstáculos burocráticos. Allebrandt cita seu caso como exemplo. Ela afirma que sofreu violência obstétrica à época em que deu à luz sua primeira filha. “Quis fazer a denúncia, mas precisava ter acesso ao meu prontuário”, ela conta. “Contratei duas advogadas e, mesmo assim, o hospital se recusou em fornecê-lo.”

Os esforços para conseguir dimensionar a extensão do problema no país também esbarram em outra dificuldade: a resistência dos profissionais de saúde, que rejeitam o conceito, tomando-o como ofensa. “A expressão ‘violência obstétrica’ é quase um insulto para médicos e profissionais da saúde”, afirma Allebrandt. Entrevistas feitas pelo grupo com profissionais de saúde de Alagoas indicam que eles têm familiaridade com o termo, mas não reconhecem que essas violências são praticadas nos serviços de saúde em que atuam.

A expectativa das pesquisadoras é que a produção de materiais de educação permanente ajude a sensibilizar esses profissionais, de modo a fazer com que percebam que o problema é real e que ele carrega consigo significados culturais de desvalorização e submissão da mulher, atravessados pelas ideologias médica e de gênero, e pelo racismo estrutural e institucional dentro dos serviços de saúde.

 

Sobre o projeto

O projeto O projeto Maternidades destituídas, violadas e violentadas: construção de redes de pesquisa, acolhimento e formação em torno ao direito às maternidades foi contemplado na chamada nº 40/2022, do Edital Pró-Humanidades do CNPq.

Coordenador: Lucia Eilbaum (UFF)