Antropologia de A a Z

Enciclopédia virtual reúne conteúdo produzido por pós-graduandos em Antropologia em linguagem clara e acessível. De caráter colaborativo e acesso livre, a obra está aberta à submissão de novos textos. Contribuições recebidas até o final de agosto poderão se tornar disponíveis para consulta ainda neste ano.

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Por Washington Castilhos

Nos últimos anos, o conceito de gênero tem sido alvo de ataques e foco de um confronto de concepções e valores, sobretudo a partir do acionamento do termo “ideologia de gênero” por setores conservadores espalhados pelo mundo. Ao equiparar o gênero a uma “doutrinação”, que teria sido criada para deturpar a concepção de homem e mulher, esta estratégia discursiva distorce as formulações de importantes pesquisadoras feministas, como Gayle Rubin e Joan Scott. Quem acessa os ensaios dessas autoras logo percebe o equívoco da apropriação mal-intencionada do conceito.

O problema, para muitos, é entender a linguagem muitas vezes hermética dos estudos acadêmicos sobre o tema, o que talvez explique, em parte, por que a falaciosa “ideologia de gênero” tenha se difundido mais na sociedade brasileira do que o próprio conceito de gênero em si.

“As controvérsias têm esse poder, por mais nefastas que sejam. Daí a importância de instrumentos de divulgação científica”, afirma o antropólogo André Secchieri Bailão, pesquisador de pós-doutorado da Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, e um dos coordenadores da Enciclopédia de Antropologia  (EA), obra colaborativa virtual e de acesso livre que reúne conteúdo produzido por pós-graduandos, visando apresentar e discutir termos e conceitos antropológicos e facilitar o entendimento para quem não é do campo.

A definição encontrada no verbete sobre gênero é um bom exemplo. Em linguagem clara e texto sintético, partindo das referências acadêmicas e feministas que gestaram o conceito, Carolina Mazzariello e Lucas Bulgarelli Ferreira, pós-graduandos em Antropologia na Universidade de São Paulo, explicam que o termo foi pensado “para enfatizar o caráter cultural das diferenças entre homens e mulheres, em contraste com a diferença sexual tida como natural e inscrita no corpo fisiológico”.

A ideia da enciclopédia nasceu em 2013, no curso de pós-graduação em Antropologia clássica da professora Beatriz Perrone-Moisés, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).

“A proposta era que os alunos pensassem como conseguiríamos explicar conceitos caros à nossa disciplina a um público mais amplo possível, mesmo de fora da Antropologia. Os verbetes eram feitos na dinâmica da aula”, recorda André Bailão, que divide a coordenação do projeto com a professora Fernanda Arêas Peixoto, da FFLCH/USP.

Imagem referente ao verbete “Hierarquia”

Inicialmente alimentado por pós-graduandos da própria USP, a obra se tornou um importante instrumento de divulgação científica. Hoje, conta Bailão, os verbetes fazem parte de ementas de cursos em universidades de todo o Brasil, e passaram a ser produzidos também por estudantes de outras universidades públicas paulistas, como as estaduais paulista (Unesp) e de Campinas (Unicamp), e as federais de São Paulo (Unifesp) e São Carlos (UFSCar), cujos professores passaram a integrar o conselho editorial em 2018. Em 2021, foi registrada com o código International Standard Serial Number (ISSN). Desde o lançamento, conta com 99 verbetes publicados.      

Diferentemente de outras enciclopédias do gênero, como a Open Encyclopedia of Anthropology , mantida pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e a Bérose encyclopédie internationale des histoires de l’antropologie , voltada especificamente à história da Antropologia e mantida por diferentes instituições científicas francesas, os verbetes da EA abordam definições sobre obras, autores (incluem-se também ativistas e não somente antropólogos), conceito, correntes de pensamento, subcampo e instituições.

Outra distinção, já citada, é que a maior parte dos textos são escritos por estudantes (alguns poucos foram escritos por professores, como o verbete sobre “morte social”, assinado pelo antropólogo Osmundo Pinho, professor na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB). Ou seja, diferentemente das enciclopédias clássicas, a EA não parte de encomendas de verbetes a especialistas. A escrita do texto faz parte da formação dos alunos.

Os textos são recebidos por e-mail e as avaliações são feitas duas vezes ao ano. As contribuições recebidas até o mês de março são consideradas para a publicação de julho. As que chegam até agosto, podem se tornar disponíveis para consulta em dezembro. São aceitas contribuições de estudantes de programas de pós-graduação do Brasil e do exterior.

Os verbetes recebidos são avaliados por dois pareceristas do corpo editorial e pelos coordenadores. Bailão explica que é necessário adequar o texto ao formato da enciclopédia, sempre visando a clareza. As orientações incluem um estilo de escrita objetiva e sintética, sem adjetivações, jargões e períodos longos. “Deve-se tentar deixar o texto mais claro, para que uma pessoa iniciante entenda”, completa o pesquisador, que também responde pelas imagens que ilustram o acervo, a maioria de domínio público.

A antropóloga Zora Neale Hurston em trabalho de campo que resultou na obra "Mules and Men", um dos verbetes da EA

Uma das peculiaridades da enciclopédia é a inclusão de autores não considerados clássicos na Antropologia, como a historiadora negra brasileira Maria Beatriz Nascimento.

“Os autores negros de modo geral são menos frequentes nas enciclopédias. Dava-se prioridade aos cânones clássicos, geralmente homens brancos”, acrescenta o coordenador.

Incluem-se ainda pensadores indígenas como Davi Kopenawa Yanomami e Sandra Benites, e o escritor e ativista quilombola Antônio Bispo dos Santos, cujos verbetes biográficos aparecem listados junto aos de nomes clássicos como Marcel Mauss, Bruno Latour, Veena Das e Émile Durkheim.

Nomes esquecidos na disciplina também vêm sendo recuperados. É o caso da antropóloga negra norte-americana Zora Neale Hurston, que tem duas obras destacadas na enciclopédia: Barracoon: the story of the last “Black Cargo”, livro sobre o último “carregamento” do navio negreiro Clotilda, de 1860, e que conta com uma entrevista da antropóloga com o último africano levado da África para os EUA; e Mules and Men, resultado de uma etnografia realizada por ela na Flórida e em Nova Orleans com os black folks (ou Negroes, como a literatura antropológica se referia à época).

“O verbete sobre a obra não é um resumo; ele tem de ser contado a partir da trajetória do autor, e tentar encaixá-lo no campo de debate do momento em que a obra foi lançada”, diz Bailão.

Outra peculiaridade é que a definição de conceitos antropológicos deve estar sempre associada à concepção dos pensadores que se debruçaram sobre o tema, isto é, o conceito debatido deve ser circunscrito ao autor tratado. É o caso de “estigma”, conceito que ganha significado na obra do sociólogo canadense Erving Goffman. O verbete é assinado por Cibele Barbalho Assensio e Roberta Soares, a partir das formulações de Goffman.

“É preciso tratar como o conceito foi gestado. O conceito precisa ter uma biografia”, assinala o coordenador da enciclopédia.

Do “estigma” de Goffman à “Jurema” (termo que designa uma planta, mas também um ritual e uma religião afro-indígena), o acervo da EA varia entre termos mais clássicos e os mais recorrentes na atualidade. Assim, termos do momento também reverberam na enciclopédia, como “gentrificação” e “etnocídio”.

O primeiro, muito falado atualmente, passou a fazer parte da enciclopédia em 2018. Criado pela socióloga britânica Ruth Glass, o termo se refere a “processos de mudança das paisagens urbanas, aos usos de zonas antigas das cidades que apresentam sinais de degradação física, passando a atrair moradores de rendas mais elevadas”, segundo definição do mestre em Antropologia Maurício Fernandes de Alcântara, autor do verbete. 

Imagem referente ao verbete "Gentrificação". Mark Ramsey, Londres 2017. Fotografia digital wikmedia Commons flikr

Já o verbete sobre “etnocídio” entrou no acervo em 2022. Focando em um debate mais contemporâneo, a doutoranda Giovana Pereira Langoni discute o conceito a partir da perspectiva do etnólogo francês Pierre Clastres, até chegar nos estudos recentes dos antropólogos brasileiros Marcio Malta e Luisa Molina, cujos trabalhos, segundo a autora, “evidenciam a necessidade de renovar o exame teórico do problema do etnocídio, a partir dos relatos e formulações dos povos indígenas sobre as violências das quais são alvo”. 

Bailão lembra que são aceitos verbetes de um assunto já publicado, desde que não seja feita a mesma leitura. Pode-se focar, por exemplo, em um debate mais contemporâneo do mesmo tema, com pontos de vista e leituras distintos.

“Os conceitos não são estáticos, inclusive para os próprios autores, que reveem suas próprias formulações. Ainda dentro do debate de gênero, pode surgir um verbete sobre ideologia de gênero, por exemplo, discutindo essa construção no Brasil”, exemplifica.

As submissões devem ser enviadas para a coordenação pelo e-mail encicloantropo@usp.br. Contribuições recebidas até 31 de agosto serão consideradas para publicação em dezembro.

 

Sobre o projeto:

O projeto “Enciclopédia de Antropologia” é fruto da parceria entre alunos e professores do Departamento de Antropologia da USP.

Coordenadores: André Bailão (Fiocruz) e Fernanda Arêas Peixoto (USP)